14/08/2020 Capa
Aldeia da Vida: Um encontro com as medicinas da floresta
Ei querido leitor, bom encontrar você novamente por aqui! Para você que está chegando, sinta-se em casa!
Nessa edição quero trazer uma contribuição muito valiosa, que se aproxima da dimensão sagrada. Já tive a honra de entrevistar muitas pessoas com muitas aprendizagens, mas para essa edição, estou tomada de completa emoção. Não se trata apenas de apresentar uma história de conhecimentos ou de sistematização de saberes. A questão aqui só pode ganhar a dimensão que merece se utilizar, uma palavra do vocabulário indígena cuja tradução é cura. Portanto, meus irmãos e minhas irmãs, por assim dizer meus Txai’s, as próximas linhas que se desdobrarão são de HAUX!
Curiosa e atenta, venho me conectando com a minha ancestralidade indígena. E foi assim que, numa dessas noites que a gente acha que não vai conseguir suportar o peso dos problemas e da solidão, que fui ver uma live de um perfil chamado @aldeiadavida. Nessa noite estava lá o Léo e sua companheira Isa cantando para o criador. Foi de uma força tão profunda que eu só fazia chorar. No final ele convidou, quem quisesse, para participar de um grupo de estudos sobre a medicina sagrada do Rumê. Não hesitei, fui lá e me inscrevi.
Acreditem, foram os trinta dias mais incríveis da minha vida. Profundidade, mergulho interno e muito haux! Mas outra hora eu conto com mais detalhes, por que a intenção dessa introdução é outra! Claro que aquilo que é intenso e profundo, sempre trazemos um maior entendimento. Quem sabe não te ajuda a encontrar seu chamado!
Apresento a vocês a Aldeia da Vida, aqui representada pelos seus guardiões Léo e Isa. Vamos conhecer um pouco mais sobre essa história de amor, autoconhecimento e medicinas sagradas. Por isso, resolvemos por opção manter a escrita integral desse texto, sem interferência.
Sintam com o coração…
Eu sou Leandro Valente, nascido em Recife pai de duas filhas a Nawá e a Kanah, duas flores lindas em minha vida. Sou casado com a Isa, minha grande companheira e juntos guardamos um espaço lindo de muita natureza, que fica localizado em Pernambuco.
Eu entrei no caminho das medicinas em busca de ajuda para curar a dor de uma grande perda que tinha me causado um trauma profundo. Conheci as medicinas da floresta através de uma amiga, mas meu primeiro contato foi com a jurema sagrada na Aldeia São José do povo Xukuru, no dia 06 de janeiro de 2013. Após vivenciar esse momento de conexão com minha ancestralidade, senti que não poderia parar por ali. Naquela época, as cerimônias de ayahuasca com povos indígenas ou grupos de xamanismo eram bem escassas, então fui conhecer a medicina na Igreja do Santo Daime. Lá, não só encontrei aquilo que tanto buscava, como também encontrei dentro da força da medicina, um novo caminho a trilhar: o do autoconhecimento.
Por muitos anos sempre fui muito inquieto espiritualmente. Passei por muitas escolas: protestante, católica, espírita e budista. Mas na minha vida inteira eu tive contato com a natureza, pois fui criado numa reserva florestal até os 11 anos de idade. Após os 11 anos fui morar numa ilha linda chamada Itamaracá no litoral norte de Pernambuco. Nesse local foi onde pude me entregar ao mar, ao mesmo tempo que se deu a continuidade do contato com a floresta, já que na ilha existem as duas coisas, mar e mata.
Em 2016, diante de um processo depressivo muito forte, tive a oportunidade de conhecer o grande Pajé Yawarani Yawanawá, que junto do seu filho Tawahw Yawanawá e sua neta Ninunihu Yawanawá, veio fazer um encontro tradicional na cidade do Recife, trazendo suas medicinas sagradas. Esse encontro foi decisivo na minha vida e também o maior de todos. Desde esse encontro com a cultura dos Yawanawá, eu entreguei meu corpo, alma e essência a essa ancestralidade e assim venho até os dias de hoje estudando esse universo espiritual e tão sagrado que a natureza e suas medicinas de poder nos trazem.
A essa altura a Isa também trilhava um caminho de busca. Ela conheceu o caminho das montanhas, viveu o ritual de “busca de visão”, uma iniciação pra quem deseja aprofundar seus estudos nessa caminhada. Logo em seguida, foi até o coração da floresta Amazônica, até o povo Yawanawá. Foi aí que nossos caminhos se cruzaram. Na segunda ida à floresta, recebi dela o convite para trabalhar com o audiovisual do projeto socioambiental na Aldeia Mutum, chamado “Aldeia Lixo Zero”. Daí, um amor profundo nascido da cura da floresta!
O primeiro contato com a floresta Yawanawá foi em 2017 quando fomos pela primeira vezaté a aldeia. Eu fui primeiro para uma imersão de dois meses onde tive a honra de ficar na casa do meu grande amigo e compadre Tuikuru Yawanawá. Esta imersão foi de extrema importância na minha caminhada, pois foi lá onde dei meus primeiros passos de aprofundamento nessa caminhada através da grande convivência que tive com os irmãos queixada. Yawanawá significa povo da queixada. Queixada é um javali da Amazônia e esse animal só anda em bando, pois assim se apresentam mais fortes.
Conviver com eles por dois meses foi uma grande e pura revolução na minha vida, pois estar na floresta Yawanawá pra mim é o que há de mais sagrado dentro da minha jornada espiritual. Isa chegou um pouco depois para o festival Yawanawá que ocorreu em 2017 no mesmo mês que eu estava lá, e foi muito mágico. Após essa convivência, muitas amizades se formaram e muitos laços de família também se formaram, acabei virando padrinho de algumas crianças, assim como ganhei irmãos que apadrinharam minhas filhas. E assim pude voltar diversas vezes para dar continuidade aos laços familiares além dos estudos espirituais.
Muita gente acredita que seres iluminados só existem do outro lado do mundo, como no Tibet, por exemplo. Pessoas voam até a Índia procurando gurus e rodam o planeta buscando o autoconhecimento, mas muitos não sabem que a Floresta Amazônica guarda muitos sábios. Pajés fortes, verdadeiros médicos espirituais assim como são bibliotecas vivas do conhecimento ancestral. Esses seres de muita luz estão logo ali, prontos a ensinar e a fornecer muitas vezes o que estamos buscando. É muito triste às vezes ir até a aldeia e ver que a grande maioria dos visitantes são gringos. Muitos brasileiros nem sonham da existência desse universo gigantesco de saberes que habitam na Amazônia. Inclusive faço um convite a todos para irmos até Floresta Amazônica.
Hoje nos comunicamos por telefone e redes sociais quando temos oportunidade. Mas sempre vamos até a aldeia, além de recebê-los aqui na nossa casa. É uma troca de conhecimentos que não quero perder nunca mais na minha vida.
Atualmente desenvolvemos trabalhos com Yawanawá e Fulni-ô. Assim como também desenvolvemos nossos trabalhos com os demais irmãos terapeutas que apoiam na nossa casa. Valorizamos muito o contato, a parceria, a troca. Mas a mesma importância se dá no respeito de saber a hora de cada coisa, o momento e o lugar.
Os irmãos indígenas vem lutando por mais de 500 anos para serem reconhecidos e respeitados. Dentro dessa luta está a sua representatividade através da fala, cultura, tradição e espiritualidade. E a colonização parece estar longe de terminar, uma vez que muitos brancos ainda carregam a energia dentro de si de colonizá-los. Tentamos colonizar quando não damos a oportunidade deles falarem. Muitas vezes queremos ser seus porta-vozes. Queremos ir até a aldeia, aprender a sua cultura, voltar pra cidade e dominar todos os territórios como se fôssemos únicos capazes ou “escolhidos” da espiritualidade. Queremos ser representantes deles aqui na cidade, gerindo seus trabalhos, controlando aonde eles vão, e com quem eles podem falar. Tudo isso ocorre hoje em pleno século 21, e nós brancos temos uma dificuldade enorme de perceber tais coisas usando a desculpa que tudo que fazemos é para o bem estar deles e para a sua segurança. Não percebemos que tais atitudes também eram as atitudes do Brasil colônia de outrora, e principalmente dos missionários cristãos que ajudaram a extinguir muitas culturas e tradições.
Os irmãos indígenas vivem na floresta há milênios, convivem com onças, jacarés, cobras e uma variedade de insetos ferozes. Se tem uma coisa que eles sabem fazer é viver com atenção e sensibilidade suficiente para tomar suas decisões. O respeito mútuo vem justamente da compreensão de que há uma amizade e nada além disso. Antes os europeus chegaram aqui oferecendo itens aos irmãos indígenas em troca das terras e riquezas naturais. Hoje muito se observa o neocolonialismo oferecendo esses mesmos itens em troca do domínio da espiritualidade desses povos. Isso precisa ser revisto e mudado. Quando há uma amizade mútua, tudo flui para os dois povos, nós conseguimos ajudá-los com seus projetos e eles nos ajudam com os nossos objetivos existenciais e assim todos caminham dentro da dignidade e honra a experiência humana.
O maior aprendizado é poder descobrir o quanto somos pequenos. Quer saber o tamanho de um caminho espiritual? Meça o quanto que esse caminho te engrandece ao mesmo tempo que este vai ficando enorme, você ainda tenha humildade de saber que é pequeno diante do universo.
Todo caminho espiritual precisa tomar cuidado com a imaturidade filosófica que pode transmitir aos irmãos que optam por caminhar dentro de suas trilhas. Muitas vezes quando escolhemos uma linhagem espiritual, entramos em cavernas, becos sem saída ou até mesmo damos de cara com algum desfiladeiro a ponto de despencar lá de cima.
Isso ocorre pela falta de cuidado ou atenção de quem conduz um trabalho espiritual e também daquele que se deixa conduzir. O que estou tentando dizer é que geralmente quando você busca o autoconhecimento, na maioria das vezes você chega cabisbaixo, decepcionado com a vida ou passando algum momento difícil. É muito comum ouvir dos templos, que basta ter fé e tudo vai mudar e se transformar na sua vida. Sim, a fé é um pilar, mas existem outros.
Presentão pra mim foi descobrir que sou pequeno. Entender que sou capaz de crescer e conquistar muita coisa, porém outras não, e tá tudo bem por isso! Quando você descobre a sua pequenez você entende que não controla tudo, não pode tudo, não é culpado por tudo e que ainda tem muito o que aprender sempre. E isso te dá forças para querer crescer sempre, corrigir e fluir na vida.
Na nossa casa, as cerimônias ocorrem praticamente todos os meses com algumas exceções. Nos trabalhos espirituais fazemos usos de algumas plantas para banhos, terapias orientais, conversas terapêuticas, medicinas naturais da floresta, além claro da medicina do abraço, do bom ouvir e do bom falar.
As medicinas da floresta são muitas. Diria até que incontáveis. Dentre elas, as que mais fazemos uso é o Uni (Ayahuasca, Daime…) e a medicina do Rumê (Rapé). Essas medicinas são ancestrais e utilizadas há milênios pelos povos originários da Amazônia. A Ayahuasca, por exemplo, foram encontradas evidências de seu uso há 5 mil anos atrás.
A Ayahuasca é um chá feito a partir de duas plantas. Um cipó chamado Banisteriopsis Caapi ou como é conhecido popularmente como Jagube, Mariri. E a folha de um arbusto chamado Psychotria Viridis popularmente chamada de Rainha ou Xacrona. Unindo esses dois elementos através de toda uma alquimia de cozimento especial, conseguimos chegar no chá da Ayahuasca. O Rapé é um pó geralmente feito de tabaco com outras ervas medicinais. A fórmula dessa medicina varia de cada povo.
Nós trabalhamos com o Rapé Yawanawá que sempre vem da floresta pra nossa casa, assim como também fazemos essa medicina de acordo com o que aprendemos lá com eles. O Rapé serve para inúmeras situações. Ajuda no descongestionamento nasal, sinusite entre outros processos físicos. Existem estudos muito sérios que estão sendo desenvolvidos em todo o planeta com estas medicinas, por vários especialistas na área da saúde física e psíquica. A Ayahuasca, por exemplo, vem sendo muito estudada no combate a doenças como ansiedade, depressão, síndrome do pânico e outras coisas mais.
Fora as questões das enfermidades, estas medicinas tem fortes conexões espirituais por carregarem dentro de suas composições, registros do nosso planeta. Tomar dessas medicinas, é colocar pra dentro a natureza que nos cerca e que muitas vezes não nos damos conta pelo peso social que vivemos e que nos cega.
Também é importante salientar que estas medicinas são para todos, mas nem todos são para estas medicinas.
Muitas medicinas que carregam saberes da ancestralidade vem se popularizando bastante e com isso, o uso irresponsável vem crescendo. Medicinas como a Ayahuasca e o Rapé não são diversões. Quem vai até um ritual xamânico provar desses portais, precisa ter um propósito de vida grande, um foco e a determinação da mudança. Tomar Ayahuasca por tomar é o mesmo que um cego tentar usar um telescópio para desvendar o cosmo. Assim é também com o Rapé que pode ser auto-aplicado ou alguém pode soprar através de um instrumento de sopro chamado Tepi no seu nariz. O Rapé é responsável por abrir fortes campos energéticos no nosso corpo mental e espiritual, e precisamos fazer o uso desta medicina com muita responsabilidade e propósito.
Estamos cada dia mais construindo uma grande comunidade dos “aldeianos” da Vida no Brasil e no mundo e isso está nos deixando muito felizes por cada laço formado e cada alma que chega e abraça. Se sentir no coração, dá uma chegadinha por aqui. Receberemos você de braços abertos.
Leandro Valente
Aldeia da Vida