02/01/2020 Capa
De mãe à mãe
Minha história com a adoção começa no final da década de 1960 e de lá pra cá, quando, recém ingressa em um estágio como assistente social (minha formação acadêmica em nível de graduação) em Buenos Aires, me deparei com a realidade do abandono de bebês logo após o nascimento. Na Casa Cuna, sensibilizada com o que enxergava diariamente, iniciei minha trajetória com a infância.
Quando cheguei no Brasil, em Porto Alegre, estudante da Pontifícia Universidade Católica, solicitei como estágio curricular trabalhar com a infância de risco e abandono. Sabia, ou achava que sabia, à época, que a pauta da adoção e os cuidados relativos à primeira infância ainda eram assuntos com políticas sociais e jurídicas muito incipientes, mas foi somente ao chegar ao Juizado da Infância de Porto Alegre (RS), antigo juizado de menores, que fui confrontada com o sofrimento da infância no Brasil. De lá pra cá, mais de 50 anos se passaram. De estagiária a aposentada.
Uma das coisas que sempre me chamou atenção era a quantidade de crianças institucionalizadas, crianças que não estavam em processo de adoção e nem de retorno às famílias. Contrariando o que hoje entendemos e o imaginário coletivo, houve um tempo em que a medicina não era o que temos atualmente, em termos de diagnósticos precoces, e crianças muito pequenas eram as que mais se prejudicavam, pois os potenciais pais preferiam aquelas que já andavam e falavam, assim estariam evitando riscos de algumas patologias indesejáveis surgirem no meio do caminho. Com o avanço da medicina o quadro mudou e atualmente os bebês recém- nascidos são o “must” da adoção em todo o mundo, não somente no Brasil. Em compensação as adoções tardias são escassas.
Da Filiação
Com o desenvolvimento da reprodução humana medicamente assistida (FIV entre outras) há uma tendência perigosa de crermos que existe um direito a criança ou um direito a ser pais. Passamos a achar que vamos a um médico e de lá sairemos com um bebê. Seja por técnicas jurídicas (adoção) ou técnicas médicas (PMA) entende-se que ser pais tem a ver com o desejo genuíno de ter filhos, porém, esse desejo não pode ser criador de direitos. É legítimo, sim, mas não é lei que o meu desejo produza uma criança pra mim.
Da adoção
A adoção é um ato jurídico que consiste na mais importante modificação do Estado das pessoas. O juiz coloca em igualdade de condições, o vínculo de amor e o de sangue, tornando a filiação legítima e irrevogável. Na família adotiva de hoje, não pesa mais sobre os pais “a dupla maldição” a que pareciam condenados no passado. Por um lado, a do abandono da criança e por outro e infecundidade do casal.
A adoção, ao contrário do que acontecia antigamente, hoje é idealizada, valorizada e admirada. Não é mais um produto do acaso, mas sim dos desejos dos pais. Desejos esses primitivos de identificação através do filho e de luta contra a angústia da morte. Afinal de contas ter filhos também é seguir na busca das nossas origens ancestrais, nos perpetuando através dos nossos descendentes.
A adoção é feita para a criança; adotar é criar uma verdadeira família. Devemos portanto refletir sobre a noção de verdadeiros pais e de verdadeiros filhos, nos questionando sobre como nascem no psiquismo humano os vínculos de parentalidade e filiação, vínculos esses que fundamentam as nossas famílias. E ainda, questionar de onde vem à certeza paterno-filial que se manifesta tanto em nós, como pais, quanto nas crianças.
Pensamos que esses sentimentos estão ligados a um fenômeno psíquico de desejo recíproco que se confirma na relação edipiana e na forma como cada um de nós elabora o seu próprio romance familiar.
Para concretizar um processo de adoção os candidatos devem passar por uma seleção realizada pelo juizado da infância, da comarca em que são domiciliados. Certos candidatos a adoção são hostis a ideia da seleção, alegam que há muita criança abandonada e que as autoridades judiciais complicam e bloqueiam o processo o deixando moroso e lento. Porém, a prática mostra que conhecer os candidatos diminui a possibilidade de fracassos futuros e aumenta a possibilidade de sucesso. A travessia de uma mãe à outra, se não bem conduzida, pode trazer consequências psicoafetivas nefastas.
Há ainda as adoções selvagens ou a La brasileira, que ocorrem fora, a margem, da justiça e neste tópico, minha pergunta é a seguinte: O que querem os adultos envolvidos, ter um filho ou conseguir uma criança?
Tanto os genitores que abandonaram a criança como os candidatos a adoção devem refletir profundamente sobre a temática com a mediação dos operadores da justiça, devidamente capacitados com o tema. É fundamental que os profissionais conheçam o tema da adoção em profundidade, uma vez que eles também serão responsáveis pelo fracasso ou pelo sucesso do procedimento.
A importância dos estudos pré-adotivos
A seleção para a adoção não pode ser vista como uma inscrição “dar milho às galinhas” e sim, precisa ser encarada sempre por uma equipe técnica competente e envolvida com a sustentação da prática.
Sabemos que a adotabilidade da criança, do ponto de vista jurídico, por si só não basta (perda do poder parental). Deve se levar em conta, sempre, um conjunto de elementos psico sociais, por exemplo, a capacidade da criança de enfrentar a passagem de uma família para outra e às vezes de uma cultura para outra (adoção internacional) e a capacidade emocional e afetiva de suportar as adversidades dos futuros pais adotivos.
Infelizmente, o que observamos muito atualmente, operadores da justiça tendem a agir como pessoas e não pelo exercício da função. As faculdades pouco se debruçam sobre o tema do abandono, do mau-trato, do abrigamento da adoção, do abuso e da infância vulnerável, questões tão prementes em nossa sociedade.
A interação entre pais e filhos na adoção
O início da interação afetiva entre pais e filhos logo após a adoção é como um nascimento, um período de descobertas, ilusões, de construção de um tecido afetivo entre pais e filhos, onde os adultos aos poucos vão descobrindo, maravilhados, sua criança (seu filho) e este está se restaurando no seu narcisismo por ter sido abandonada, narcisismo este que também foi restaurado para os adultos, que até então não podiam ser pais. Estamos diante, então, de um romance familiar, e mesmo a criança sendo mais velha, irá regredir para voltar a nascer simbolicamente nesta nova família. É comum querer voltar a ter hábitos de bebê (mamadeira, xixi, colo, dormir junto e ter falas de uma criança muito menor).
A criança precisa esquecer tudo o que aconteceu com ela assim como os pais querem e precisam esquecer todos os procedimentos pelos quais passaram até chegar aquele momento. É um esquecimento “obrigatório” para ambas as partes. Todo o apego que irá se formar, se estabelecer (ou não) deve ser explicado, deve haver preparação.
A teoria da pediatra húngara Emmi Pikler ajuda a entender como é possível formar o apego. Esta, a criança, nunca é tratada como objeto e sim como um ser que sente, observa, registra, compreende ou compreenderá caso receba oportunidade. O cuidador, por sua vez, nunca terá um ar apressado, dando à criança todo o tempo que ela necessita não interrompendo seu ritmo e nem a ação que a dupla se propôs a fazer. O adulto através de uma observação atenta poderá começar a identificar as competências do bebê, o deixando explorar e brincar de forma curiosa e espontânea, exercitando livremente sua motricidade e reconhecendo suas habilidades e competências. Em resumo, é preciso deixar as crianças plenamente seu potencial de indivíduos, de acordo com sua maturidade biológica, respeitando cada etapa do desenvolvimento da criança, não impondo atividades e ações que correspondam exclusivamente ao interesse dos adultos.
um processo lento, gradual e para que os fracassos e devoluções não sejam uma tônica é preciso que exista de um lado, orientação adequada e de outro um manejo mais paciente dos novos pais, que não devem impor de imediato à criança, ritmos, horários, etiqueta, modos de comer, de sentar á mesa, de se comportar em ambientes sociais.
Termino aqui, dizendo que só o amor não basta, não é suficiente para o sucesso de uma adoção. O apego, os vínculos e a filiação nascem na cabeça, no psiquismo, na preparação para o exercício da parentalidade, da criança para enfrentar os novos formatos de família e dos profissionais, como citei acima, são essenciais na redução dos riscos e precisam receber atenção.
Sylvia Baldino Nabinger
Doutora em Direito de Família pela Universidade de Lyon na França; Consultora Internacional para Infância. Assistente Social aposentada do Juizado da Infância de Porto Alegre. Atualmente atua como Professora da Escola do Ministério Público/RS e do Contemporâneo Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade. Terapeuta Familiar. Presidente da Associação Pikler Brasil.