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12/08/2020 Educação

Os perigos de uma Pandemia Pós Pandemia

Lentamente, porém, a civilização subtraiu à criança o ambiente social. Tudo é excessivamente regrado, demasiado fechado e rápido. Não só o ritmo acelerado de vida do adulto passou a constituir um obstáculo à criança, mas o advento da máquina, que arrasta para longe como um vento impetuoso, privou-a até mesmo dos últimos recantos onde refugiar-se.
Em consequência, a criança está impossibilitada de viver ativamente. Os cuidados que lhe dedicam consistem em salvar-lhe a vida dos perigos que se multiplicam e que a atormentam exteriormente. Mas, na realidade, a criança é um fugitivo no mundo, um ser inerte, um escravo.
Ninguém pensa na necessidade de criar para ela um ambiente de vida adequado; não se reflete que ela tem exigências de ação e de trabalho.
In: Maria Montessori (2010)

Há três meses entrevistei a família de uma bebê que tinha poucos meses. A entrevista online trazia uma esperança de que a bebê estivesse na creche em breve. Era o início da pandemia. Expliquei calmamente como funciona nosso berçário e fiz muitas perguntas sobre a bebê, que no início do isolamento tinha poucos dias de vida. A família conta que a bebê passava o dia no apartamento com a mãe. Ainda não conhecia primos, tios, avós e a rua.

Aquela família, tão cuidadosa com sua bebê, tinha uma preocupação com o fato de que o bebê não tinha contato com outros seres humanos para além dos pais. E eu, me preocupei com o fato de que, a mensagem que aquela família me dizia: faltam partes de afeto. Faltam colos, sorrisos e palavras, não só na vida de nossa bebê mas, também na nossa, com quem imaginávamos compartilhar a experiência de ver crescer este bebê.

Poucos dias depois da entrevista com esta família começo a ler sobre outros bebês que perderam o direito às interações humanas. Os prematuros, os que estão em UTI, os bebês nascidos de barriga de aluguel. Todos estes bebês, em uma enfermaria, por mais que estejam cuidados, perderam algo fundamental: O colo cheio de afeto, onde podem existir como pessoa. O colo de seus pais e de toda uma rede de pessoas que formam a família.

Os pensamentos que me acompanham desde então: Qual o efeito do isolamento para os bebês e crianças pequenas? Como será a entrada dos bebês nascidos durante a pandemia ou, um pouco depois, na creche? Como as famílias de bebês se sentem quando ao receberem seus bebês não podem contar com as redes de apoio? E com as crianças? O que ela ganha e perde estando apenas com seus pais?

Esta pergunta inicial foi se estendendo para a situação das famílias que de repente se viram sem a creche? Como se dariam as relações de muitas famílias que continuaram a trabalhar ou daquelas que perderam seus empregos? Quais seriam as modificações para novas rotinas? Seria possível uma nova rotina quando os bebês exigem tempo de qualidade para se desenvolverem? Como estariam os bebês, que saíram de uma vida de liberdade na instituição, de rotinas organizadas de maneira estável, de socialização com outras crianças, para um isolamento forçado?

Passei meses acompanhando uma plataforma os últimos dez dias iniciei a revisão de artigos científicos que trouxessem a temática dos efeitos da pandemia no desenvolvimento infantil. Minha busca tinha como principal objetivo compreender estes efeitos do ponto de uma educadora de bebês.

Enfim, há duas semanas o texto de Maria Beatriz Linhares e Sonia Regina Emimo é publicado e, nele, encontramos diversos alertas que me colocaram em um estado de atenção ainda maior.

As autoras explicam que o conhecimento sobre os efeitos psicológicos da pandemia em bebês e crianças estão sendo estudados conforme o isolamento se estende. Isso se dá pelo fato de que nas pandemias anteriores os contextos não eram mesmos. As autoras alertam para alguns fatos não devem ser generalizados, porém, tomados em consideração quando pensamos em bebês e crianças pequenas.

Todos nós, de alguma forma, fomos afetados com o isolamento. Somos seres sociais e a aproximação nos impulsiona para o desenvolvimento. No caso dos bebês, no entanto, há algo de importância central neste momento. Sabemos que os bebês humanos dependem de outros humanos para seguirem o caminho da vida.

Descobrimos há pouco mais de sessenta anos que os bebês já vêm ao mundo com um aparato apropriado para estabelecerem uma Comunicação Social. As parcerias interativas, desde o início da vida, são essenciais para aquilo que chamamos de desenvolvimento humano. No entanto, não se trata de qualquer parceria interativa. As interações humanas analógicas são importantes pois, é através delas que a criança pode se envolver em tramas comunicativas. Em uma relação analógica o bebê, mesmo sem falar, poderá ser compreendido a partir do gesto.

Pense em um bebê que olhando para a seu cuidador principal aponta para um pássaro visto em uma árvore. O adulto observador diz: Olha, você está vendo um pássaro que está em cima da árvore. Este bebê, apesar de não falar, vai tornando-se capaz de construir uma percepção e fazer as primeiras relações sobre o que é árvore, o que é pássaro e o que é estar em cima da árvore. A comunicação se inicia antes mesmo de a criança saber falar.

Mais adiante, a criança começa a perceber outros pássaros e novamente aponta, expressando ao adulto que ele já sabe o que é aquele animalzinho. Nestes momentos os bebês olham para o seu cuidador esperando exatamente que ele lhe diga o que acontece. O adulto “empresta seu pensamento ao bebê ” a partir da linguagem. E como é bonito quando os bebês começam a mostrar mesmo para pessoas desconhecidas este mesmo pássaro. Ele não espera conhecer a pessoas, mas ele deseja se comunicar.

Nem todos os bebês terão interesses pelos pássaros. Alguns vão gostar do cachorro, outros dos quadros de sua casa, outros ainda das flores, e ainda outro, de alguns brinquedos da creche. Alguns se encantarão pela chuva e outros terão muita alegria ao se encontrarem com uma poça de água. Fato é, que cada bebê percebe e se interessa por diferentes aspectos do mundo físico. É por este motivo que em nossas instituições cuidamos para que cada bebê receba respostas específicas para seus interesses específicos. Há sempre um cuidado exclusivo para cada bebê ou criança pequena. O cuidado que faz com que a criança siga em seu desejo de descobrir. E é por este fato que o educador de bebês deve ser o mais preparado. Este educador deve ser capaz de compreender cada bebê.

Do ponto de vista do bebê, a capacidade de perceber e de se comunicar à partir de gestos só é possível na interação humana. O bebê primeiro recebe o gesto dos adultos em seu corpo. Os olhares, os toques, os sorrisos, e também, as tristezas, os medos e as inseguranças que lhe podem ser transmitidas na interação. O adulto oferece-se também para ser conhecido enquanto conhece o bebê.

Pensemos em um bebê que ao mostrar o pássaro é ignorado. Se gritam com ele, ou se fingem não vê-lo. O que aconteceria?

O bebê poderá desistir de se comunicar, o que diminuirá a sua curiosidade, sua atenção e, em especial, impedirá a formação de sua inteligência. Pois não pode aprender quem não deseja aprender. Por outro lado, por não ser respondido, a criança pode sentir efeitos de emoções como abandono e despertencimento.

O primeiro efeito estressor em uma pandemia que poderá ser um risco para o bebê e a criança pequena é a ausência desta presença humana. Quanto menor o bebê, mais a necessidade de cuidados corporais, de atenção e de interação humana.

A qualidade do contato humano determina o que a criança aprende. Nas palavras de Winnicott, a criança aprende com o que os adultos fazem com o corpo delas e, com o que elas mesmas fazem com o seu próprio corpo.

Mas como as famílias poderão oferecer cuidados de qualidade e uma boa interação quando sofrem os impactos de uma situação de pandemia?

Os pais, em especial as mães, continuam seu trabalho com o acúmulo das tarefas domésticas mais os cuidados com os bebês. O trabalho é realizado on line, porém, com o mesmo nível de exigência.

Resta-lhes a presença de um “outro” que não é humano, mas que silencia e distrai a criança. Um outro que não pode estabelecer uma situação comunicativa. Um outro que não pode compreender o que o bebê pensa, que não pode se comunicar com o bebê no sentido que apresentamos aqui. Um outro que não proporciona a criança uma interação que parte de suas singularidades, ou outro que não leva em consideração seus interesses específicos. Um outro que exclui a percepção de muitas aprendizagens do mundo físico.

Este “outro” são as telas.

Embora saibamos que , esta é a realidade possível para algumas famílias, para que continuem este seu trabalho remoto, não podemos deixar de repensar os impactos que este “outro “ irá causar na vida dos bebês e crianças pequenas.

Voltemos ao exemplo do pássaro: Quantas questões são mobilizadas naquela situação real. O bebê usa sua capacidade de percepção e atenção, usa o gesto para se comunicar, escuta a resposta do educador, e responde novamente à resposta do educador. O pássaro poderá aparecer novamente na mesma árvore, mas mesmo que assim seja, a situação será nova.

Será em um dia pela manhã. Será em um dia chuvoso, será em um dia em que o bebê está com um amiguinho. Enfim, esse pássaro nunca estará ali da mesma maneira. Muitas narrativas serão construídas. Por exemplo, a educadora poderá dizer para o bebê: Nossa , esse pássaro vimos ontem, vamos mostrar ao João? Ou ainda, Veja, hoje o pássaro está com outros passarinhos e eles cantam bem alto.

Quando entregamos a tela à criança também podemos mostrar um pássaro, no entanto, será sempre o mesmo pássaro em uma situação em que o bebê e criança recebem passivamente informações. Não há um outro capaz de compreendê-la. Nenhuma máquina pode estabelecer uma relação comunicativa como a que vivemos em uma situação analógica.

Portanto, eis o perigo de uma Sexta Pandemia. O que será das crianças que estão ficando longas horas sem a oportunidade de trocas comunicativas exclusivas a seus interesses?

O alerta foi levantado pela Sociedade Brasileira de Pediatria que reiterou, no início da pandemia, as orientações relativas aos possíveis danos às crianças expostas à tela como a dependência digital e uso problemático das mídias interativas; problemas de saúde mental: irritabilidade, ansiedade e depressão; transtornos do déficit de atenção e hiperatividade; transtornos do sono; atraso de fala, transtornos de alimentação, sedentarismo e falta da prática de exercícios; problemas visuais, miopia e síndrome visual do computador; problemas auditivos e PAIR, perda auditiva induzida pelo ruído; transtornos posturais e musculoesqueléticos. (2020)

A mesma orientação, baseada em estudos mundiais, diz que o tempo de tela para crianças de 0 a 3 anos deve ser ZERO, e que o uso de tela de três a cinco anos deve ser de uma hora no máximo, com acompanhamento do adulto.

Volto a dizer que compreendemos a situação e as necessidades das famílias, porém, o impacto em relação ao desenvolvimento das crianças seguirá seu curso.

Está na hora de repensarmos se em uma sociedade as necessidades adultas devem estar sempre em oposição às necessidades das crianças. Eis o nosso paradoxo de maior urgência: resolvemos sempre os problemas dos adultos em detrimento das reais necessidades das crianças.

Se os pais precisam das telas pois, não há outra rede de apoio, devemos com urgência pensar se esta sociedade é uma sociedade justa e comprometida com o futuro. Pais precisam ter o direito de exercer sua parentalidade. Bebês e crianças pequenas devem ter o direito de contar com a interação humana, única maneira de passarem da condição de ser para a condição de existir.

Onde há tela há ausência de adulto e, onde há tela há ausência de ação e criação da criança no mundo real. Sendo assim, se a criança aprende também com o que ela faz com seu próprio corpo, o que está acontecendo enquanto está entre cinco e seis horas em frente a uma tela? Pesquisas apontam que as luzes das telas destroem neurônios, impedem a produção de melatonina, comprometem a capacidade de pensar e reagir.

Não é a tela que deve ser nosso foco de análise mas, o que a criança deixa de fazer quando está frente à tela?

Ela deixa exatamente de viver o que vivia nas escolas sérias, nos contextos de interações e brincadeiras. Ela deixa de conhecer o mundo, ela perde a possibilidade de perceber as características do mundo físico- pesos, aromas, texturas, temperaturas, movimentos, cores reais, e do mundo matemático, tamanhos, formas, direção, quantidades. Ela perde a capacidade de se comunicar pois, repete passivamente informações. Ela perde a sensibilidade de perceber nuanças pois, seus olhos não dão conta de perceber detalhes nos desenhos em duas dimensões que se movimentam freneticamente.

A tela não pode oferecer às crianças nenhuma das três necessidades psicológicas humanas fundamentais: Sentimento de Pertencer (Ter empatia.), Sentimento de Saber Fazer (Competências e Habilidades) e o Sentimento de Autonomia (Tomada de Decisões).
Bebês estão em perigo pois, é nos três primeiros anos de vida que se forma a arquitetura cerebral. E o mesmo podemos dizer em relação às crianças pequenas. As crianças estão em perigo.

O que será dos bebês e crianças que há mais de cem dias estão em situação de “não atuar no mundo”?

Vimos a cada dia, mesmo no meio educacional, uma mudança repentina de discursos sobre este “outro”. Mas a quem estes discursos servem? A que ponto chegamos nessa relativização de tudo, o que impacta na vida da criança a favor da lógica do consumo?

Meu desejo, é que tenhamos a clareza necessária para enfrentar a pandemia que virá após a pandemia: A pandemia da ausência das interações humanas que já estavam fragilizadas, mas que agora, sem as escolas, se evidenciam.

Que possamos debater, em várias esferas, o que é a responsabilidade partilhada entre famílias e escolas para o desenvolvimento ótimo de todas as crianças.

Citação Inicial:
Röhrs, Hermann.Maria Montessori / Hermann Röhrs; tradução: Danilo Di Manno de Almeida, Maria Leila Alves. – Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.
Recomendações sobre o uso de telas – Sociedade Brasileira de Pediatria.
https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/sbp-atualiza-recomendacoes-sobre-saude-de-criancas-e-adolescentes-na-era-digital/

Leila Oliveira Costa
Pedagoga | Terapeuta
leilabob9@hotmail.com

 

Colaboradores

Leila Oliveira

leilabob9@hotmail.com