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24/05/2020 Educação

Sobre os três direitos essenciais de todos os que um dia foram bebês, e dos bebês

Beatriz tinha cinco anos quando me fez uma pergunta registrada em meu trabalho de conclusão de curso.

Se tijolo é feito de barro, por que as pessoas moram em barracos?

Na ocasião, nós estávamos em uma pesquisa sobre como se construíam casas. Beatriz, a quem amorosamente eu chamava de Bia, estava comigo desde os três anos, em uma escola pública, em que tive a oportunidade de seguir professora por três anos de um mesmo grupo.

A pergunta nada inocente de Bia veio após de uma série de experiências com o barro: Visita a uma olaria, conversas com um pedreiro e construção de pequenos tijolinhos de barro em caixas de fósforos.

Na época eu tinha vinte e dois anos e aquela pergunta mudou o rumo de toda a minha história como educadora. A pergunta me fez voltar os olhos para uma questão primordial: o que é importante saber para a garantia dos direitos fundamentais?
Realmente, para se fazer uma casa, é preciso um pedaço de terra, e tijolos que podem ser produzidos a partir de uma matéria prima também disponível na natureza: o barro.
A força humana, e em especial, as mãos humanas, podem produzir um tijolo. Havia um sentido profundo na pergunta de Bia, mas para mim, naquele momento, não havia uma resposta com a mesma profundidade.

Após duas décadas de trabalho em dezenas de comunidades elaborei algumas respostas que hoje divido com vocês, leitores deste artigo, antes disto, apresentando perguntas que são ecos da provocação de Beatriz.

O primeiro eco desta provocação tomou forma quando iniciei alguns estudos sobre as origens da matemática.

Revendo a história desta ciência, descobri que antes de pensar em contar ou realizar operações complexas, a matemática se relacionava com os enigmas do céu e da Terra: a posição dos astros que permitiam a localização, a marcação das lunações que contavam sobre o tempo de colher e plantar, o controle sobre as sombras solares produzidas em obeliscos que contavam sobre as estações. Esses conhecimentos, baseados em profunda contemplação da natureza, se revelaram como a mais elevada sabedoria. Inicialmente era uma sabedoria partilhada e reverenciada. As comunidades possuíam uma sabedoria “SENTIDA”, e reverenciavam a colheita por compreenderem a relação de sincronicidade em todos os fenômenos da terra.

Houve, no entanto, um momento em que esta sabedoria partilhada passou a ser atribuída a alguns sábios. Este momento foi o aquele em que os seres humanos passaram a produzir excedentes e riquezas. Fragmentou-se o conhecimento em duas partes: a teoria e a prática.

Para exemplificar melhor a questão, gostaria de voltar a pergunta de Bia.
Se para se construir um tijolo é preciso apenas de barro, por que as pessoas moram em barracos de madeira

No início das civilizações os arquitetos eram também construtores. Eles desenhavam e construíam as casas. Com o tempo, e em especial no nosso tempo, separamos tanto os conhecimentos, que distribuímos as tarefas da construção de uma casa em várias partes. Há um desenhista, um calculista, um especialista em materiais, um decorador, um eletricista e um encanador. Essa especialização e separação acontecem para aprimorar e acelerar a construção de muitas casas ao mesmo tempo, mas, em especial, para responder uma demanda de nossa sociedade, que é atribuir valor ao trabalho.

Aquele que possui o conhecimento de um conteúdo (teoria), por exemplo, o engenheiro ou arquiteto que é capaz de calcular o que usar para uma casa ficar em pé, é mais valorizado do que aquele que assenta os tijolos, um trabalho manual, por isso, considerado, mais simples (prático).

Ou seja, há uma separação entre o pensar e o fazer.

Na escola, em geral, os conteúdos teóricos são mais valorizados. De fato, aprendemos uma matemática em sua forma (teoria), sem compreendê-la em relação aos fenômenos que podem ser representados a partir delas (prática).

E assim, aprendemos o que é um paralelepípedo “um prisma de face retangular” (teoria), sem a relação de que, um prisma pode ser construído com barro, e, estes prismas sobrepostos podem formar uma parede que, poderá ser transformada em uma casa (prática).

Estendo a pergunta da Bia para outro direito fundamental: O direito à alimentação.
Se em nosso país, onde a germinação acontece quando apenas jogamos uma semente em um terreno, e alguns alimentos brotam até na geladeira, por que tantas pessoas passam fome?

Desde a separação da compreensão entre a sincronia entre os fenômenos do céu e a germinação, e mais ainda, desde que sábios iniciaram o processo de manipulação que permitem modificar a ordem natural da germinação, a morte pela fome só aumenta.

O perigo de que só alguns humanos conheçam a sabedoria da germinação coloca toda a raça humana em perigo.

Na escola aprendemos novamente a teoria: O que é a planta, suas partes, sua classificação, mas não aprendemos a germinar. Germinar é algo prático, realizado por agricultores, pessoas simples que têm a sabedoria prática, mas que não são valorizados.

Também aprendemos sobre a composição química dos alimentos, mas pouco sabemos sobre a arte de cozinhar.

Vocês devem estar me perguntando, por que na coluna dedicada a educação de 0 a 3 anos eu escrevo hoje sobre teoria e prática.

Me explico.

No momento em que vivemos, em meio a uma pandemia, circula em toda a sociedade uma afirmação: Vamos morrer de fome e, vamos ficar sem casa.

Esta afirmação circula entre os adultos, e de fato, ontem dia 17 de Abril de 2020 , vinte e cinco mil, novecentas e oitenta e quatro pessoas morreram de fome no mundo até as nove horas da noite.

Entre estes milhares, milhares são crianças, e milhares estão abaixo dos três anos. No Brasil, quase dez milhões de crianças vivem na extrema pobreza. Muitas destas crianças são filhos de pessoas que produzem riqueza para o país. São filhos dos pedreiros que constroem as casas dos donos da teoria sobre construir casas, ou das cozinheiras que cozinham para os donos da teoria sobre a engenharia de alimentos.

A dicotomia, “quem sabe versus quem faz”, aumenta a cada dia, a possibilidade de vida. Daí a expressão sobreviver.

Até quando vamos manter a nossa existência em uma sobre vida?

Pergunto isso, por que a sobrevida tira, dos novos seres, o mais preciso dos direitos fundamentais: O direito ao Cuidado.

Neste momento em que as crianças voltam para suas famílias, o mais fundamental para que tenham vida, é o alimento e um teto.

Em especial, o teto se configura como um substituto à primeira morada, o ventre materno. O alimento se configura como substituto ao primeiro alimento: O leite materno ou a outro leite que foi oferecido pela mãe.

O colo, um berço, uma casa. O leite, um legume, uma fruta. Um caminho de acalento, que cuida e faz crescer.

O cuidado mais fundamental para o humano tem suas primeiras expressões na alimentação e no colo. Nascemos incapazes de nos alimentarmos sozinhos e de protegermos nosso corpo do frio e do calor. Necessitamos de um outro para nos cuidar. Necessitamos de outro humano.

Mas novamente estabelecemos uma separação entre teoria e prática quando nos referimos a quem é o outro humano.

Aprendemos sobre direitos, deveres, simpatia, antipatia, respeito, desrespeito, mas não conseguimos mobilizar o cuidado com todos os outros humanos, e nem mesmo com a nossa humanidade, pois, na prática há um grupo de humanos que consideramos serem dignos de cuidados e um ouro grupo de humanos, que não são dignos de cuidados.

Chegamos a não cuidar de nós mesmos. Sem perceber…

E assim, não podemos ensinar às próximas gerações sobre o que é cuidar.

Passamos por mais perigos nas últimas décadas.

Estamos tirando as crianças de suas famílias desde a mais tenra idade e lhes colocando em espaços em que elas recebem comida, mas não conhecem o processo de preparo da comida. Estamos lhes colocando em salas minúsculas e superlotadas e lhes tirando o direito ao céu, com suas nuvens e sol. Estamos lhes tirando dos braços das mães e lhes colocando em bebês conforto em frente às telas. Estamos lhes tirando o teto, a comida, a casa e o cuidado muito cedo, a fim de que suas famílias continuem no processo cego de produzir riquezas apenas para alguns.

Bebês vêm ao mundo com uma programação perfeita. Nascem comedores, são programados para apegar-se ao outro e procuram segurança.

Com poucos meses de vida são capazes de serem solidários. Oferecem comida a seus pais, aos animaizinhos e também a desconhecidos. Se compadecem com o choro de coleguinhas e de seus pais. Dividem um espaço onde descansam com um coleguinha e oferecem um abraço.

Bebês se encantam com flores, frutas, com o vento, pássaros, com o céu.
O que acontece no processo de crescer? O que acontece no processo que apelidamos de humanização?

Se alguns de nós levarmos a pergunta de Bia como uma pergunta fundamental, nos daremos conta, que a escola e toda a nossa sociedade precisa cuidar de se voltar para processos mais simples, pois neles residem os grandes mistérios da vida e as soluções mais práticas que permitem uma existência plena na nossa passagem pela terra.

Ter alimento, ter abrigo, ter cuidados.

Leila Oliveira Costa
Pedagoga | Terapeuta
leilabob9@hotmail.com

Colaboradores

Leila Oliveira

leilabob9@hotmail.com