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08/01/2021 Educação

Deixar emergir os silêncios: por outras formas de escutar, compreender e respeitar os Cuidados com os Bebês

Tomo de minha última leitura (o texto de Alma Gottlieb) a seguinte reflexão: nós adultos, que falamos sobre a nossa visão sobre os bebês e que falamos por eles, somos tomados, nas últimas décadas, pela percepção de que os bebês precisam de cuidados corporais e que estes cuidados influenciam na sua vida hoje e, para sempre.

Mas o que é necessário para se cuidar do corpo do bebê?

Uso a palavra percepção pois, em todas as culturas, os cuidados com o corpo do bebê são uma realidade presente, porém, com contornos diferenciados. Uso também a palavra percepção para evocar que, percebemos à partir dos sentidos, porém, de maneiras formas diferentes, a depender de como na nossa própria cultura vivenciamos o corpo.

O que é necessário para o cuidado com o seu corpo?

Durante todo o ano de 2020, retomei, depois de múltiplos diálogos, leituras e escutas, as minhas próprias crenças e intenções em relação aos cuidados corporais, e em especial, a constituição social daqueles que consideramos cuidadores e daqueles que recebem os cuidados: os bebês.

O cuidado corporal é a única forma de cuidado possível?

Me surpreendi quando ainda este ano tive que explicar a adultos sobre o fato de os cuidados serem parte do que chamamos de processo educativo. Em todos os sentidos, e de quem um professor de bebês, que não se ocupa dos cuidados, na verdade res-sente a visão de que os excrementos dos bebês constituem-se como algo que apesar de fazer parte da vida, é repulsivo.

Este fato me fez retomar a primeira leitura que fiz sobre a história das práticas integrativas em saúde, de autoria do professor Nelson Fílice de Barros. Diz ele que a própria Vida, pela diferença que estabelece entre seus comportamentos propulsivos e repulsivos, (eu chamo de re-sentidos), introduz na ciência humana as categorias de saúde e doença. Os excrementos dos bebês, também se constituem neste nível, são perigosos pois causam doenças (repulsivos), e ao mesmo tempo necessários a vida(propulsivo) pois sua ausência, significa doença. E portanto, se os excrementos são parte da vida, quem se ocupa destes excrementos? A lógica escolar exclui a lógica que é a vida?

Em um texto de Abril de 2020 escrevi sobre a centralidade dos cuidados na vida dos bebês que voltavam para casa com suas famílias. Naquela ocasião observei que não entregamos aos pais uma pedagogia. Entregamos aos pais o protagonismo em relação aos cuidados que até ali eram compartilhados (no melhor dos casos).

Nos meses que se passaram, em especial no atendimento a famílias na clínica de família, ou nos atendimentos em reuniões escolares, essa percepção sobre a centralidade dos cuidados foi se tornando mais evidente na medida de que as preocupações familiares giravam em torno da comida, do sono, dos excrementos (desfralde, problemas intestinais, infecções urinárias), motricidade e fala.

As alegrias e percepções sobre o desenvolvimento sadio dos bebês também se concentram neste círculo de questões. Os pais não diziam: Percebi que ele construiu uma torre! ou, Meu bebê desenhou um círculo! Ou meu bebê desenvolveu um Jogo Heurístico. Ao contrário, o desenvolvimento era descrito em afirmações como: Ele aprendeu a andar! Ele come usando a colher conosco! Ele brinca o tempo todo com as coisas da cozinha! Ele está deixando as fraldas! Ele repete o que falamos!

O que os pais que tiveram oportunidade de estar com os filhos perceberam são “as coisas da vida”. Coisas da vida que englobam estes dois aspectos: os propulsivos e os repulsivos.

Reconheci alguns aspectos de alta complexidade e que eram considerados como problemas para as famílias, aspectos que se manifestam nos discursos dos pais e dos educadores, e em mim também, como implicações dos discursos sobre o que é cuidar, educar, desenvolver-se e, em especial, sobre o que é certo ou errado na educação quando falamos da vida dos bebês. Estes discursos, muitas vezes baseados em uma mistura de discursos colonizadores, eurocêntricos e americanizados sobre desenvolvimento, encontrados em diversos manuais, programas, livros e abordagens que pretendem tomar para si o protagonismo do discursos e que, se vistas apenas em sua forma podem se tornar mecanismos que destroem a possibilidade de relação entre quem cuida e quem é cuidado. Entre quem observa e quem é observado.

Acostumamos com discursos sobre desenvolvimento dos bebês baseados em métricas definidas, em evidências científicas e não plurais mas sempre produzidas em arcabouços científicos e destituídos de duas realidades importantes, as econômicas e as sociais. Embora pesquisas no campo da sociologia da infância e da etnografia, como as realizadas pela brasileira Renata Meirelles, ou como as realizadas por Alma Gottlieb na África, nos mostrem que em um mesmo país, o papel da cultura dá contornos diversos para o desenvolvimento dos bebês e das crianças, ainda acreditamos que é necessário um caminho seguro, que costumamos chamar de correto para o desenvolvimento dos bebês. Desconsideramos a organização das comunidades estranhas à nossa; suas crenças, filosofias e economia que, funcionam como balizadores destes processos que chamamos FORMAS de VIDA. Curiosamente, ao nos focar neste caminho correto, muitas vezes não conseguimos perceber aspectos de nossas próprias formas de vida, a de sociedade dita moderna, que desviam o curso do desenvolvimento de um bebê.

Gostaria de apresentar a meus leitores dois pequenos exemplos que revelam a importância de se considerar o papel destas estruturas sociais na análise dos discursos sobre desenvolvimento.

Pensemos nos textos que evocam a ausência da brincadeira nas sociedades modernas. É verdadeiro que as crianças brasileiras da era moderna não brincam? Talvez se visitássemos comunidades como aquelas em que estão constantemente Renata Meirelles, Roquinho ou, visitássemos espaços como Fava de Bolota perceberíamos que a brincadeira existe, resiste e, faz parte da vida das crianças.

O mesmo pode ser considerado quando alertamos constantemente os pais das grandes cidades sobre os perigos da tecnologia, quando, 66% das crianças não tinham acesso a recursos tecnológicos em 2018. O que fazem estas crianças?

Em ambos os casos, podemos tomar as afirmações: As crianças não brincam e, recursos tecnológicos atrapalham o desenvolvimento das crianças como um fato verdadeiro mas em determinada comunidade. Há algo silenciado que precisa ser percebido. O que as comunidades em que as crianças brincam podem nos ensinar? O que fazem as crianças que não tem acesso a aparatos tecnológicos? O que estas comunidades que estão no Brasil podem nos ensinar?

A pergunta que re-senti neste período diz respeito a estas questões. Como podemos acessar, em nossas próprias comunidades, saberes que estão silenciados e desconsiderados em educação?

Eu mesma precisei de silêncio para compreender algumas incoerências no que eu mesma me propus a ensinar: Os cuidados com os bebês.

Vejo crescer a disseminação de um conhecimento importante, válido, necessário, mas, por outro lado, vejo um perigo iminente: Transformar abordagens em métodos instrumentais que colonizam os cuidadores e os bebês.

Quem me acompanha, sabe que nos últimos anos, eu tenho realizado viagens constantes para compreender os Fundamentos da Abordagem Pikler. Fascinada pelas possibilidades concretas de transformação do meu olhar para o trabalho que realizo com bebês chamei para mim mesma uma responsabilidade: Compreender essa abordagem como uma pesquisa.

De fato, a riqueza da Abordagem Pikler é o fato de como, a partir de um arcabouço de conhecimentos em vários campos de conhecimento (psicanálise, salutogênese, nutrição e medicina, pedagogia) a pediatra austro – húngara Emmi Pikler, desenvolve um sistema de Cuidados de Qualidade. No entanto, não há em sua literatura a afirmação de que este seria o único sistema de cuidado possível. Pensando por exemplo, na sua pesquisa principal, que é o desenvolvimento motor, Emmi Pikler relata em sua pesquisa os possíveis PERCURSOS dos bebês que no início de suas vidas são colocados deitados com a barriga para cima em solo firme, em liberdade de movimentos. As descobertas de Emmi Pikler sobre estes percursos são surpreendentes, porém, localizadas em um contexto histórico, cultural e de condições de vida que não podem ser reproduzidos, mas, podem ser ampliados e tomados como referências. Por exemplo, em Bengland, onde vivem os bebês Beng essa pesquisa não faria sentido. Ali, os bebê devem estar sempre em contato com o corpo de alguém, ou da mãe enquanto ela mesma trabalha no campo, ou no corpo de uma Len Küly (cuidador de bebê). Deixar o bebê longe do corpo é considerado uma crueldade nesta cultura. Além disto, o bebê fica sempre preso às costas deste outro nesta posição vertical, algo que não é aconselhável na Abordagem Pikler. Ainda assim, os bebês Beng, que ficam pouco tempo no chão, engatinham entre quatro e seis meses e andam entre doze e catorze meses, período possível para os bebês pikler, que estão em liberdade desenvolverem as mesmas capacidades. Penso também, na conversa que tive com Nilce Pontes sobre os Cuidados com os Bebês no Quilombo. Nos primeiros dias de vida, os bebês são enrolados e ficam bastante tempo no colo, não só da mãe, mas de todos os que quiserem pegá-lo no colo, um sinal da importância da coletividade no cuidado naquela comunidade. Depois estes bebês são colocados em cestos e levados para o campo com a família. Inicialmente são retirados do cesto pelos adultos e aos poucos, se tornam capazes de sair deste cesto. O cesto, que teoricamente, na Abordagem Pikler seria visto como um espaço que contém o movimento, na Comunidade Quilombola não é uma ameaça para o desenvolvimento do engatinhar e do andar que acontece também, em período próximo àqueles relatados por Pikler e Alma Gottlieb quando apresenta o caso dos bebês Beng.

Coloco esses casos para exemplificar como, um sistema de evidências como o da preciosa pesquisa de Emmi Pikler não pode ser vista como regra ou metodologia. Bebês de 1950, sem pai ou mãe, em uma instituição coletiva, em que os adultos não são pais, ou seja, em condições materiais, sociais, econômicas e históricas específicas se desenvolvem de forma magnifica à partir de um sistema de Cuidados de Qualidade que é Multifatorial, assim como os bebês Beng, e os bebês Quilombolas.

Com este exemplo não quero confundir meus leitores ou propagar um relativismo raso, com a afirmação de que tudo é certo a depender do contexto. O que apresento aos leitores é uma provocação. Nestes três exemplos, os sistemas são de Cuidados de Qualidade, pois, nas palavras do professor Nelson Fílice de Barros, são Cuidados Emancipadores. Permitem aos bebês viverem de forma plena aqui e agora, protegidos e, em especial, sendo vistos como pessoas dotadas de particularidades e singularidades em múltiplas dimensões. Emmi Pikler nos inspira ao transformar em possibilidade uma vida plena, longe dos perigos mais eminentes que são frutos da separação e do abandono. A comunidade de Bengland, que acredita, antes de tudo, que os bebês são seres espirituais e assim significam suas práticas de cuidados, de maneira singular, consideram estes os bebês com vontades e anseios próprios, porém sem perder de vista que devem ser cuidados e protegidas por outros. Assim também acontece em uma Comunidade Quilombola que, acolhe o bebê como anjos recebidos pela Terra. Os adultos são então, responsáveis por cuidar de cada um destes bebês e protegê-los.

Em síntese, em comunidades diversas, situadas culturalmente, historicamente, socialmente e economicamente, o Cuidado de Qualidade é presente, embora com contornos diferentes. A propulsão e a repulsão, parte da vida, criam significantes diversos, mas, o acolhimento ao bebê em suas múltiplas manifestações é presente.
Dito isto, evoco uma segunda provocação aos meus leitores que de alguma forma convivem com bebês: será que somos capazes de considerar então, estes conhecimentos silenciados em relação aos cuidados com os bebês, em especial em nosso país? Será que nos damos conta dos contornos específicos que criam nossos sistemas de cuidados? Será que estes cuidados são emancipadores, ou seja, será que permitem uma vida plena no aqui e no agora?

Lembro-me de minha perplexidade quando, nas muitas ações formativas que pude oferecer este ano, os módulos dos estudos europeus relacionados a educação de bebês, chamavam centenas de educadores (e isto é magnifico), porém, os módulos de estudos de nossas próprias comunidades estiveram quase vazios.

Também observei, neste período, que existe uma resistência de olhar para nossos bebês fora do eixo: Casa e Escola. Mesmo com afirmações de que bebês são agentes sociais, em nossa cultura a sociedade do bebê é vista de forma rasa, sempre emparedada na relação com seus pais ou com educadores, o que se constitui como contorno perigoso em relação a estrutura de vida. Para autores Húngaros como Nagy, na sabedoria do Quilombo e, na sabedoria dos Beng, os Cuidados de Qualidade fazem parte de um sistema de valores que impactam a sociedade como um todo, incluindo o futuro da própria comunidade.
Amplio esta questão pedindo seu silêncio neste ponto da leitura.

Os bebês estão apenas em casa ou na escola?

Onde mais em nossa sociedade os bebês são realmente sociais?

Somos capazes de sair desta distração coletiva, vestida de positivismo e pseudo poesia, de palavras bonitas e regras de ouro sobre bebês?

Podemos compreender que o protagonismo do bebê não é apenas micro?

Quantas vezes lemos: As famílias precisam da creche para trabalhar e, quantas vezes pensamos coisas não muito dignas sobre esta afirmação já que, no discurso presente, prestar assistência é um aspecto vergonhoso e rechaçado no olhar das teor ias educativas?

Será que conseguimos compreender neste período que há mais conteúdos silenciados em relação a educação de bebês do que poderíamos imaginar?

Quando afirmamos que as famílias precisam trabalhar, ou seja, precisam de uma rede de apoio para continuarem no mercado de trabalho e garantir seu sustento, poderíamos considerar este um aspecto importante pois, presente em outras culturas também. A questão é que, quando olhamos o contorno que uma pandemia trouxe para esta afirmação, podemos perceber que estávamos inocentemente desconsiderando os bebês como protagonistas em relações também de cunho econômico. Criamos um tipo de cuidado na sociedade brasileira que não se sustenta em um padrão de qualidade para a Vida Aqui e Agora. Criamos um sistema de cuidados que sustente a manutenção da produção de dinheiro.

Mas há ainda outras questões que podemos pensar sobre o que chamamos de cuidados em nossa sociedade.

A pandemia fechou escolas que atendem bebês, sejam elas públicas ou privadas, e em muitos casos, os que cuidavam dos bebês viram-se sem seu próprio trabalho. Ou seja, o cuidador que cuida do bebê, só tem valor enquanto sustenta a produção de dinheiro.
Uma escola a cada nove horas foi fechada em 2020 por motivo da “ausência compulsória dos bebês” e não por ausência de uma abordagem A ou B. Bastou que a creche não pudesse desenvolver a sua principal função que é a dos cuidados para que, em poucos meses, sua sobrevivência estivesse ameaçada, em especial no quesito: Finanças. A presença dos bebês gera capital, no entanto, chamamos o investimento em bebês de gasto.

Revisitando após oito anos a minha dissertação de mestrado fui tomada pelo mesmo sentimento de desconforto de quando descobri que, o projeto Casulo, iniciativa do Regime Militar, ao contrário do Colégio Caetano de Campos, receberia a maior quantidade de crianças pobres com o menor custo possível. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação continua a disseminar a premissa: A premissa dos padrões mínimos de qualidade de ensino.

E enquanto os bebês recebem o mínimo, eles sustentam quanto do máximo da produção econômica?

Eu me silenciei para pensar que este padrão mínimo de qualidade, torna-se um padrão mínimo de cuidados, desde a origem dos cuidados institucionalizados. O emparedamento dos bebês, que lhes tira a saúde, e a vida em natureza em favor de uma segurança imaginária. O medo da areia, das folhas caídas no parque, do pernilongo, e das pedras, são perigos frente a um vírus.

O discurso de que o número de bebês por sala não importa e de que o que importa é a vontade do educador, e que faz grandes metrópoles como Campinas juntarem em salas minúsculos quarenta e dois bebês. O discurso que espaços adaptados são suficientes para se garantir os cuidados com os bebês e de que, os professores devem trabalhar por amor e por isso, cuidarem de oferecer os insumos básicos como sabão e shampoo, não nos servem mais.

O fosso entre o público e o privado e o silêncio sobre os ataques financiamento da educação fizeram surgir que tipos de espaços de cuidar?

Volto a comunidade Beng, em uma imagem relatada por Alma Gottlieb, em que ela fala da fila que cresce na comunidade quando um bebê chega ao mundo. Além das boas vindas, os visitantes jogam para o quarto onde o está o bebê moedas ou búzios (que nestas comunidades são tão preciosos quanto o ouro). Penso também na cena descrita no livro de Emmi Pikler, em que ela relata a necessidade de materiais como balanças e medidores de leite, objetos materiais, como necessidade eminente para um atendimento de qualidade.
Precisamos escutar para além dos discursos que nos dizem que “Abordagens Pedagógicas, Projetos e Planos são suficientes”. Bebês contribuem com a economia, possuem necessidades de cunho econômico e sim, o investimento econômico também influencia no desenvolvimento”.

A visão de bebês em “guardarias” palavra ainda existente em muitos países da Europa é falsa. Os bebês não estão guardados e passivos. Ver o protagonismo do bebê significa inseri-lo nas discussões de cunho social, econômico e quem sabe um dia, espiritual.
Precisamos ir além da discussão mais que rasa sobre cuidar e educar, para uma outra, que seja capaz de entender o bebê inserido nesta complexa rede de relações que é frágil e perigosa.

Bebês também participam da manutenção de formas de vida, que podem ser vida ou sobrevida.

Portanto, seremos capazes de, ao aprender sobre as formas de Cuidar, deixar vir outras, silenciadas por várias forças, que podem trazer uma qualidade que deixe viver, de forma plena, AQUI e AGORA aqueles que um dia serão nossos cuidadores?

Que creche acolherá nossos bebês daqui em diante? A mesma? Podemos iniciar um círculo vicioso e virtuoso de Cuidados com a Vida?

Só poderemos compreender estas questões todas, se nosso silêncio, nos levar a outras formas de compreender Outras Formas de Cuidar. E quem sabe, estas formas de cuidar possíveis estejam bem perto de nós?

Leila Oliveira Costa
Pedagoga | Terapeuta
leilabob9@hotmail.com

Colaboradores

Leila Oliveira

leilabob9@hotmail.com