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02/08/2019 Educação

Para qualquer nutrição, não nos esqueçamos do amor (Parte I) – A complexidade da alimentação

Foto: Gisele Weiss Almeida

Parece-nos que tudo sobre a alimentação já foi dito e, parece-nos óbvio que isso tivesse acontecido. Ao nascer o aparato que nos dá a possibilidade de ingerir alimento já está disponível. Nossas papilas gustativas começaram a desenvolver-se no segundo mês da gestação, e no oitavo mês já havíamos construído alguns hábitos alimentares que nos acompanharão pela vida afora a partir dos hábitos de nossa mãe. Os hábitos de nossa mãe derivam das possibilidades Culturais traduzidas por aspectos sociais, econômicos e geográficos de sua própria existência, no momento da gestação.
O acesso à comida poderia ser farto ou limitado. Não só por questões financeiras, mas também, por questões que se conectam ao conhecimento. Em uma das comunidades em que trabalhei, tinha a atribuição de preparar alguns alimentos com educadores, com as cozinheiras e com as famílias. Lembro-me de observar, logo na primeira visita a cozinha o modo de preparo da carne. As cozinheiras tinham muito medo de queimar o alimento que, naquela comunidade, era escasso. Então elas colocavam litros de água junto à carne. Faziam o cozimento por muitos minutos e quando percebiam que o cozimento estava ideal jogavam todo o caldo (na maioria das vezes de uma carne de músculo, com grande quantidade de proteína) no ralo da pia, servindo as crianças apenas com o resíduo que estava na panela. Na mesma comunidade, quando apresentei às mães uma ordem possível para a apresentação dos legumes, um grupo se olhava com total expressão de riso. A abóbora naquela comunidade era, essencialmente, uma comida para porcos.
Geograficamente e historicamente, a comida carrega significados construídos na coletividade. Há uma variedade de alimentos típicos que representam uma região. Há alimentos relacionados a rituais religiosos e alimentos que representam instituições. Há também alimentos que representam modificações políticas, buscas de território, escravidão e guerra. Há alimentos que impulsionam o comércio. Alimentos que nos nutrem e que nos matam.
Embora não pensemos nestas questões quando comemos, há em nosso inconsciente marcas profundas que influenciam nossas escolhas alimentares.
Isso pode ser demonstrado quando sentimos repulsa por um tipo de alimento ou, quando algum deles nos trás memórias de infância, saudade ou sentimento de culpa.
Quando pequenos ouvimos sobre como comemos, sobre quanto comemos e sobre o que comemos. Talvez, um adulto amoroso, que nos era importante nos ensinou a escolher algum tipo de alimento e nos fez desistir de outro.
Talvez um adulto se mostrou indiferente à qualidade e a quantidade de alimentos que ingerimos . Talvez um adulto importante, não com más intenções, mas com intenções baseadas em suas próprias construções geracionais nos obrigou a comer mais do que gostaríamos ou poderíamos, nos ameaçou e até nos castigou usando a comida. Talvez nossa família brigava à mesa. Talvez riam. Talvez almoçamos juntos aos domingos. Talvez comemos em frente à TV ou sempre estávamos sozinhos. Talvez recebemos um alimento preparado com cuidado, talvez um alimento preparado com desprezo.
Quais destas marcas desconhecidas ou conhecidas, conscientes ou inconscientes, nos impedem hoje, de considerar as várias facetas da alimentação na nossa individualidade, e consequentemente na nossa sociedade?
São estas as questões que coloco adiante de qualquer orientação em instituições ou famílias que apresentam as “queixas comuns” sobre a alimentação dos filhos.
Por anos, seguia convencida que as expressões: recusa dos alimentos, compulsão alimentar, comportamento anoréxico de crianças acamadas e os outros substantivos que nomeiam distúrbios alimentares eram suficientes para explicar o quadro sintomático destas crianças. Porém, foram as necessidades que se impuseram a mim durante a última década, que me fizeram perceber uma infindável teia de relações que precisam ser repensadas antes de se falar em “problemas alimentares infantis”
Já não aceito com tanta ingenuidade que são esperadas e prováveis os problemas de alimentação. Percebi a força que o resgate de algumas questões com os adultos com os adultos são tão importantes quanto apenas ensiná-los técnicas para que a criança se alimente melhor.
Para cada queixa em relação à criança há algumas perguntas que despertam outras possibilidades de reflexão aos adultos. (Tabela)

Estas perguntas não têm como objetivo constranger os adultos ou condenar algum comportamento alimentar, mas, em geral, nos permitem oferecer uma possibilidade para que eles mesmos compreendam o que pode estar acontecendo com a criança. Alguns adultos começam a traçar uma rede de outras perguntas a partir de uma destas perguntas, ou verdadeiras redes de histórias vivenciadas.

É no encontro com perguntas e histórias que estes adultos se dão conta de que as questões alimentares das crianças são questões humanas, e, portanto, questões também dos adultos. Fortalecidos pela compreensão de seus processos estes adultos se tornam autônomos para colaborar com o processo de descoberta dos alimentos pela criança.
Adultos não comem apenas pelo motivo de estarem com fome. E nem sempre, na presença da fome ingerem comida.

Foto: Gisele Weiss Almeida

Foto: Gisele Weiss Almeida

Quando nascemos, aceitamos alimento apenas até o limite de nossa fome. A fome é uma necessidade fisiológica, enquanto o apetite se refere à vontade de comer.
As necessidades fisiológicas não podem ser controladas. Se passarmos por um jejum longo, nossas funções vitais não funcionarão de forma adequada. Os hormônios e neurorecptores envolvidos no processo de aviso para a baixa de energia disponível funcionarão para qualquer organismo humano. Seria ingênuo acreditar que a criança rejeita alimento por que não tem fome.
Óbvio? Não!
A fome se relaciona como dissemos acima, a queda de energia e de nutrientes disponíveis. Para ter fome precisamos gastar energia.
Ponto nefrálgico, muitas das resistências alimentares das crianças de instituições que venho atendendo estão conectadas com este ponto: A impossibilidade de gastar energia. As crianças não brincam em lugares abertos, não correm não se exercitam. No caso dos bebês, estão presos em bebês conforto ou cadeirinhas. Não brincam, não engatinham. Embora precisem de energia para o desenvolvimento do corpo, esse processo metabólico pode começar a funcionar em sistema de economia de energia. O corpo entende que precisa funcionar consumindo menos. Em instituições e comunidades menos favorecidas este fenômeno se transforma em um desenvolvimento corporal mais lento, e por vezes, abaixo do esperado para certa idade. Outra possibilidade de modificação do padrão da fome na ausência do movimento e da brincadeira é o aumento da obesidade infantil e consequentemente dos casos de resistência à insulina. E quanto mais resistentes à insulina nossas crianças ficam maior a necessidade de ingerirem alimentos que se transformam em açúcar. Daí a preferência pelos carboidratos presentes em instituições desde o berçário e o alto índice de diabetes infantil.
Enquanto, na presença destes sintomas insistimos para que a criança aceite alimentos nos esquecemos que a brincadeira ao ar livre se constituiria como um remédio que regula a fome a seu padrão ótimo de funcionamento.
Em relação ao apetite, em que a receita é sempre: Ofereça nos primeiros anos de vida apenas alimentos saudáveis, o que é de suma importância, tenho me perguntado sobre, o que seria saudável em nosso país, por exemplo, em que usamos uma centena de agrotóxicos em cereais e vegetais. Consideramos de suma importância que as crianças se alimentem sempre com alimentos pouco processados no início da vida e para toda a vida, mas acreditamos que habituar-se a uma alimentação saudável depende de uma autoeducação do apetite.
O apetite pode ser usado pela criança como um instrumento.
Eu diária que o apetite não pode ser considerado apenas como a “vontade de comer”. O apetite precisa ser visto em uma ótica da educação da VONTADE, não apenas a vontade de comer, mas a vontade enquanto processo essencial de viver.
Educar a própria vontade depende de uma motivação individual interna e subjetiva que envolve nosso ser social, biológico e psíquico integralmente. Para a maioria dos adultos, é extremamente árduo o controle da vontade. O que aconteceu para nos perdemos neste processo que deveria ser autônomo?
A questão é que a educação da vontade se relaciona a processos de escolher, iniciar ações motivadas por curiosidade, classificar, avaliar, ouvir, experimentar, perceber e perceber-se, compreender, analisar, concentrar-se, julgar.
Acreditamos que as escolhas alimentares conscientes da criança formam-se progressivamente quando lhe permitimos experiência da autoeducação da vontade, e estas experiências não estão restritas às escolhas alimentares. Nas situações cotidianas os verbos que se relacionam a este processo estão presentes. Uma criança só poderá saber se gosta de um alimento quando é capaz de experimentar. E a capacidade de experimentar não nasce necessariamente da experiência da alimentação. A capacidade de perceber a reação de um alimento no corpo só pode ser alcançada quando a criança é capaz de se conectar com o próprio corpo. A capacidade de concentrar-se no momento da alimentação acompanha o desenvolvimento da concentração em outros processos de vida.
A centralidade da brincadeira e do movimento novamente se coloca aqui. Brincar é a principal via para a educação da vontade. Brincar nos possibilita fazer escolhas conscientes e analisar riscos.
E quanto aos adultos, qual seria seu papel nos processos de alimentação das crianças?
O principal papel do adulto é escolher se vincular à criança, deixando de lado as queixas em relação à alimentação, para criar uma rede de compreensão sobre ela com a criança.
Para isto ele precisa ser capaz de pensar, O que eu gostaria de comer se durante toda aminha vida só tivesse tomado leite? Uma pera ou uma laranja? Uma batata ou uma batata doce? Um alimento cozido ou uma verdura crua?
Minha experiência tem demonstrado que, quanto menor a criança, maior a conexão dela própria com seus processos vitais.
É por este motivo, que nos diferentes programas de alimentação que organizo junto às nutricionistas para escolas e famílias, a máxima é: Como esse bebê se alimentou até aqui?
No caso das crianças maiores, a partir de sabores conhecidos inserimos outros, respeitando e fortalecendo a vontade e inserindo grupos de alimentos em uma ordem que pode ser diferente das que nos apresentam os manuais de pediatria.
Cada comunidade tem disponível um tipo de alimento. Não podemos ir contra este fato, o importante é repensar, como adultos, nossos caminhos alimentares para compreender, e até, (por que não?) refazer este caminho lado a lado com as crianças.
Para qualquer nutrição, não nos esqueçamos do amor.

Colaboradores

Leila Oliveira

leilabob9@hotmail.com