Publicidade
20/05/2019 Educação

O que o adulto diz sobre a criança, é o que a criança é?

Tenho me dedicado nos últimos vinte anos a compreender alguns comportamentos das crianças pequenas que são interpretados de maneiras diversas por educadores e famílias.

A pergunta central sempre tem sido: O que o adulto diz sobre a criança, é o que a criança é?

A abordagem sistêmica me permitiu ao longo dos últimos sete anos, ampliar e escutar ressonâncias para esta pergunta:

– Como as experiências dos adultos lhe permitem ver e interpretar o que a criança faz?

– Como sistemas diferentes compreendem uma mesma ação da criança?

– Qual o papel da linguagem na modulação do que consideramos virtudes ou defeitos das crianças?

– Onde devemos buscar possibilidades para que a própria criança possa, em meio a tantas vozes, ouvir a si própria?

Inspiro-me em Maria Beatriz para adentrar a estas questões.

Maria Beatriz tem oito meses na data em que escrevo este texto. Ela vive com seus pais e irmã mais velha e, enquanto os pais trabalham, é cuidada por sua avó materna. A tia de Maria Beatriz, Juliana, é estudiosa da abordagem Pikler, que tem como fundamento o respeito à autonomia da criança, ao tempo particular de desenvolvimento e ao movimento livre. É Juliana que tem compartilhado pequenos vídeos sobre o desenvolvimento de sua sobrinha e as conversas com sua irmã (mãe de Maria Beatriz) sobre este desenvolvimento.

A primeira consideração que devo fazer sobre este bebê é que nunca lhe foi imposto chegar a uma postura que ela não conseguisse alcançar por si própria. Ela era sempre colocada deitada de costas, no chão, nos primeiros meses de sua vida. Não demorou muito tempo para que começasse a rolar e se arrastar.  Lembro-me que, neste período, estávamos ansiosos a espera que ela engatinhasse, mas não foi o que aconteceu. Ela alcançou a posição de gato e passou para a posição sentada. Voltava a encostar o ventre no chão para se arrastar e antes de engatinhar começou a ficar em pé. O entusiasmo da família com o percurso realizado por ela é evidente, como também é evidente que quanto mais a família confia na capacidade deste bebê mais  lhe dão tempo e um ambiente propício para seu desenvolvimento.

A cada vídeo recebido eu me impressiono com o auto cuidado de Maria Beatriz consigo própria. Este cuidado se revela em três aspectos principais:

  • O movimento sempre iniciado por sua própria vontade e despertado por uma atenção prévia a algo do entorno que lhe desperta interesse.
  • A integração dos movimentos corporais na busca do equilíbrio.
  • O comportamento de prudência a cada ação que realiza.

Maria Beatriz não sofreu acidentes mesmo apoiando-se em vasos para retirar pedrinhas dele. Não se machucou em objetos da casa, em quinas, em portas ou em degraus. Ela para a ação e consegue voltar a uma posição anterior quando seu corpo precisa de repouso. Procura pessoas da casa quando acorda, sem pânico ou choro. Engatinha por toda a casa calmamente até encontrar alguém da família.

Foto: Juliana

Foto: Juliana

Foto: Juliana

Foto: Juliana

Enquanto acompanho o desenvolvimento de Maria Beatriz, me deparo com outras dezenas de bebês com o mesmo tempo de vida. Todos diferentes em relação ao desenvolvimento motor, controle corporal, interesse pelo entorno e objetos e em manifestação da própria vontade. Não são bebês que eu consideraria, como fazem a maioria dos adultos, mais espertos ou mais atrasados, com dificuldades ou mais inteligentes, difíceis ou fáceis de lidar. São bebês diferentes.

No diálogo com as famílias destes bebês e também com os educadores com os quais diariamente me deparo, é evidente que, a interpretação sobre o que faz uma criança de oito meses revela-se sob paradigmas muito diferenciados.

Para algumas famílias e educadores, deixar um bebê no chão pode ser um ato de abandono que com certeza pode trazer doenças. Para outras famílias e educadores traduz-se como falta de cuidados e até de recursos.

Esperar o tempo da criança, respeitando seus percursos também pode ser angustiante. Embora se fale que cada criança tem seu tempo, os pais e educadores se perguntam: Como saber se um tempo mais longo de desenvolvimento é normal ou patológico?

Em nosso século, em que a precocidade é vista como uma qualidade e até como uma vantagem, e que precisamos mostrar aos outros como nossas crianças são melhores na aprendizagem de conceitos, como dar à criança o tempo necessário para que ela se concentre e aprenda a partir do que é possível ao seu desenvolvimento físico, intelectual e anímico?

Como não nos confundirmos com tantas informações sobre dispositivos que podem acelerar o desenvolvimento como celulares, andadores, jogos que estimulam ou apostilas que ensinam cores e letras?

Atravessados por discursos que estão ancorados em tradições da medicina, da psicologia e da mídia, pais e educadores interpretam ações dos bebês e das crianças pequenas e ainda se deparam com as limitações a que eles próprios se depararam ao longo de seu desenvolvimento.

Quantos adultos gostam do chão? Quando sentimos, depois de adultos, nosso corpo relaxado sobre o chão, sem ser ele um tatame de academia ou o tapete macio de nossa casa? É possível para o adulto de nosso tempo iniciar ou cessar uma ação à partir de sua própria força interna, ou seja, à partir de seu interesse genuíno comandado por um interesse e curiosidade?

O adulto de nosso tempo tem controle de seu próprio corpo? Usa conscientemente o corpo? A atenção e o movimento estão integrados na busca do equilíbrio?

Os adultos agem com prudência ou com medo?

Esse panorama de análise, nossas próprias experiências e a linguagem que circula em nossa sociedade, coloca-se como um problema.

Haveria possibilidade de transpor este problema?

No caso de Maria Beatriz, encontramos esta possibilidade seguindo os passos que sua própria família seguiu.

Em primeiro lugar, esta família está aberta à escuta do discurso da tia, um discurso desconhecido, porém baseado em estudos que se conectam a potência da criança. Esta família também está aberta à observação. Os pequenos filmes, resultado destas observações, são sempre partilhados com novas perguntas e com interesse por outras análises. Em terceiro lugar, a família responde a cada etapa de desenvolvimento de Maria Beatriz preparando um ambiente que permita novas conquistas autônomas.

Este CICLO: ESCUTA, OBSERVAÇÂO e AÇÂO, é o que eu  considero a essência das relações de qualidade.

Enquanto se aproximam de Maria Beatriz, mais celebram as conquistas autônomas e mais confiante se torna a pequenina no entorno e no adulto. A família compreende que seu bebê não precisa se desenvolver em grandes saltos, mas de forma contínua e em seu ritmo particular.

Em várias famílias e, especialmente em instituições, este ciclo ocorre de forma inversa.

Resistência à escuta de possibilidades e fixação nos problemas, ausência de observação e excesso de ações sempre baseados em discursos que evidenciam o que falta à criança, ou seja, ausência do verdadeiro interesse pela criança e seus processos, que se traduzem em relações sem qualidade. Espera-se que a criança ande, que fale, que aprenda, que apresente resultados, sem a consideração do que ela é e pode. A criança percebe que não responde ao adulto da forma que ele deseja e não deixa de confiar neste adulto, ao contrário, deixa de confiar em si mesma.

Bebês e crianças pequenas devem ocupar-se com as coisas que dizem respeito a si mesmas. Necessitam urgentemente de adultos que estejam dispostos a lhes presentear com profundo interesse em suas possibilidades e em relacionar-se com elas.

Que a história de Maria Beatriz continue nos mostrando que há um caminho possível.

Colaboradores

Leila Oliveira

leilabob9@hotmail.com