07/03/2019 Educação
Os conteúdos do brincar
São inúmeros os estudos sobre o brincar. Antropólogos, biólogos, psicólogos, historiadores e pedagogos interessam-se por esta atividade da criança.
Quando pergunto a pais e educadores se eles consideram a brincadeira importante, sempre recebo uma resposta afirmativa. Porém, quando pergunto qual motivo os levam a crer que a brincadeira é importante, recebo respostas que misturam inúmeros conceitos. A brincadeira pode ser importante porque é a partir dela que a criança revela seu mundo interior; a brincadeira é importante, pois se constitui como um traço humano; a brincadeira permite a fantasia e a imaginação; a brincadeira é potencialmente uma metodologia de ensino.
Diante de respostas como estas eu costumo duvidar de meus interlocutores.
Não!
Não consideramos a brincadeira importante. Sabemos falar sobre sua importância, mas não temos certeza do que ela é, pois ainda usamos afirmações como: Ele só quer brincar! Agora não é hora de brincar, é hora da atividade! O João só brinca na sala de aula! Eles estão só brincando! Na idade dele a escola é só brincar!
Acredito que apenas a observação do brincar, ancorada por diferentes experiências da vida prática que vivenciamos, pode nos fazer compreender um significado profundo e essencial da brincadeira: Os conteúdos do brincar.
Meu interesse por estes conteúdos nasceu desde que comecei a compreender como as descobertas do mundo físico e da matemática, que eu vivenciava a partir de simulações com instrumentos como medidores, eram, em sua origem, explorados por nossos ancestrais de forma intuitiva.
Observando bebês e criança pequena em ação é possível perceber uma atitude de pesquisa que se modifica a cada vez que a criança descobre, por sua própria ação, uma lei que pode ser testada e reaplicada. No entanto, para ver que a criança mobiliza esta lei na brincadeira o observador necessariamente precisa conhecê-la. Precisa tê-la aplicado e ser capaz de compreender os passos que levam à lei.
Certa vez observei dois bebês que tinham aproximadamente onze meses o primeiro e quinze meses o segundo, na incrível tarefa de colocar pequenas forminhas de papel em um galão de água.
O bebê menos experiente, apesar do foco na brincadeira não conseguia acertar todas as forminhas dentro do gargalo do galão, enquanto o bebê mais experiente realizava a tarefa com maestria. Isso não os impedia de estarem juntos. Poucos minutos depois o bebê menos experiente percebe que o coleguinha consegue acertar quase todas as forminhas para dentro do galão. Depois de parar a ação por alguns segundos, passa a recolher as forminhas e agora as entrega para o coleguinha terminar a ação. Nenhuma das duas crianças fala, mas é possível perceber que a brincadeira tem uma lei. Dividiram-se as funções em relação às competências de cada um.
Seria esse o único conteúdo a circular na brincadeira?
O que os dois bebês experimentam para além da lei do trabalho em grupo?
Ao menos dois conteúdos se apresentam na brincadeira em questão. O primeiro que gostaria de apresentar tem relação à Contagem. O primeiro bebê recolhe várias forminhas de uma só vez e tenta colocá-las no gargalo. Algumas forminhas caem para dentro do garrafão enquanto outras caem para fora. O segundo bebê coloca uma forminha de cada vez. O que aumenta a precisão da tarefa. Nenhuma forminha cai do lado de fora. Um observador inexperiente diria que o segundo bebê é mais esperto que o primeiro, mas isto não passa de uma verdadeira ilusão. Na verdade o segundo bebê é mais experiente na brincadeira e com certeza já passou pela fase em que tentou jogar várias forminhas ao mesmo tempo em um recipiente.
Uma característica que antecede a capacidade da contagem é a percepção de que é possível se fazer uma coleção. Para o primeiro bebê basta colocar objetos semelhantes dentro de um mesmo recipiente. Ainda que alguns caiam, o que importa é colocar sempre objetos iguais no mesmo local. Ou seja, o bebê já é capaz de colecionar e perceber semelhanças.
O segundo bebê apenas avança nas percepções de leis para realizar a coleção. Os objetos precisam ser iguais e devem ser colocados um a um, ou seja, em determinada ordem. A percepção desta ordem, descoberta após inúmeras brincadeiras de colecionar, é um dos princípios fundamentais da contagem. O sistema de numeração decimal, por exemplo, tem como característica a ordinalidade.
O segundo conteúdo interessante que os bebês vivenciam nesta brincadeira é de um campo que se estende à geometria. O campo da Topologia em que se estabelecem relações espaciais de campos próximos. A brincadeira de guardar as forminhas no galão é intensamente rica em relação a percepções elementares fundamentais como perto, longe, aberto, fechado, dentro, fora e profundidade.
Por fim, a própria ação de dividir a brincadeira em etapas se apresenta como uma capacidade de organizar-se no Tempo. As sucessões das ações de forma organizada, com pausas e esperas, colocam a evidência de que para estes bebês importa o que fazer antes, durante e depois em suas ações.
A percepção das leis que se mobilizam nesta brincadeira é inicialmente intuitiva. A repetição das ações é que possibilitam a generalização da noção. Durante meus vinte anos de observação de crianças pequenas pude confirmar que as crianças começam a aplicar a lei de um conteúdo depois de testarem inúmeras vezes a mesma ação.
É neste ponto que a maioria das escolas erra.
As escolas pretendem que as crianças aprendam as leis pela fala do professor, pela atividade na folhinha, apostilas, por textos, vídeos, joguinhos de computador com a fala e “projetinhos” em que se aplicam tarefas sequenciadas que não permitem a ação.
As crianças, por carregarem o que há de mais humano em sua mais pura forma, mobilizam muitos conteúdos na ação. É por este motivo que a artificialização do conhecimento trouxe à nossa comunidade os múltiplos problemas de aprendizagem da atualidade.
Só quando compreendermos as origens do conhecimento teremos a certeza de que nascemos para aprender e para mobilizar conhecimento na ação.
E se a ação da criança é brincar, vamos olhar para as origens do conhecimento que ali estão!