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09/11/2018 Educação

Uma visão Sistêmica para o que chamamos de Conflitos na Infância

Trabalho em instituições que atendem bebês e crianças pequenas há pelo menos vinte anos. Quando eu iniciei meu trabalho como professora, aos 19 anos, eu compreendia que algumas crianças precisavam um pouco mais de mim. Eram crianças que choravam muito, batiam, puxavam cabelos dos colegas, gritavam e me diziam sempre: Não!

Lembro-me de um garotinho chamado Vinícius. A cada vez que era contrariado se jogava no chão e chorava por um bom tempo. Eu esperava passar, e muitas vezes, por dentro eu dizia a mim mesma: Que força tem esse pequeno corpo que expressa com tanta veemência esse descontentamento. Lembro-me também de outro garotinho chamado Márcio. Certa vez mordeu com muita força um coleguinha. Precisei tirá-lo de cima do colega depois de colocar minha própria mão em sua boca para fazê-la abrir.

Naquela época, a minha própria história de vida me ajudava a entender que, para cada pessoa, situações diferentes geram reações diferentes. De uma forma ou de outra, eu sabia, por um conhecimento advindo primeiro de observação, que em determinadas épocas da vida da criança, comportamentos iriam aparecer e depois, desapareceriam ou diminuiriam. Meu interesse por estes comportamentos aumentou quando percebi que, ao meu redor, eram poucas as pessoas que suspeitavam que algumas manifestações da criança poderiam ser passageiras. Esse contingente de gente, preocupada com a desobediência e com as chamadas crianças agressivas, foi pouco a pouco aumentando quando passei a trabalhar em instituições diversas como consultora ou formadora de docentes.

No primeiro encontro com qualquer grupo sempre lanço a questão: O que você gostaria de saber sobre as crianças de 0 a 7 anos?

Invariavelmente aparece a resposta: Como lidar com as agressões?

Este texto é um resumo de algumas reflexões que tenho realizado com diferentes grupos. Meu desejo é que cada criança que estiver perto de você leitor, possa se beneficiar das ideias que aqui apresento.

A maneira mais didática que encontrei para sair das explicações mais frequentes sobre os diferentes comportamentos das crianças foi pensar em Ambientes Afetivos Mapeados.

Esses diferentes ambientes afetivos podem habitar o próprio corpo da criança ou lugares fora dele.

Embora, como em um ecossistema todos os ambientes estejam interligados, mapear diferentes ambientes afetivos pode ser uma maneira potente para a compreensão os cuidados que devemos ter com cada um deles.

Para mapear esses ambientes usei conhecimentos da biologia, da antropologia, antroposofia e da teoria geral dos sistemas aplicada aos sistemas familiares.

O ambiente afetivo CORPO.

O primeiro ambiente onde afetivamente a criança se situa afetivamente é o próprio corpo. Quando o bebê nasce, todas as sensações de bem-estar e mal estar advém do corpo: Fome, frio, calor, desaconchego. A satisfação das necessidades do corpo acalma o bebê. Isso é visível e amplamente difundido, no entanto, há pouca clareza sobre como a criança continua a viver o ambiente corpo ao longo da vida e sobre a relação deste ambiente com algumas manifestações da criança.

O ambiente corpo se modifica várias vezes ao longo da vida. Observe um bebê recém-nascido. Sua cabeça, desproporcional ao tamanho dos membros exige cuidados. Os bracinhos pequenos não alcançam o topo da cabeça. Pernas também são pequenas e, assim como os braços, precisam reaprender a movimentar-se em um ambiente diferente como qual estava acostumado no útero. O bebê se esforça para ter controle sobre esses movimentos. Se você puder observar um bebê a descobrir as mãos irá vê-lo passar por diferentes estágios de interação afetiva com este ambiente corpo. Observei o pequeno Nivaldinho, filho de uma grande amiga surpreender-se quando conseguiu colocar a mão diante do rosto. Ele passou longos quatro minutos esforçando-se para manter a mão no ar. Irritou-se. Logo depois soltou os braços, exausto, e dormiu. Esse exemplo demonstra que, logo cedo, a criança pode manifestar insatisfação a partir do momento que se interessa em ter controle sobre si. Controla-se, controlar o ambiente corpo, exige esforço. Adultos, muitas vezes instruídos, manifestam irritabilidade quando se propõem a controlar o seu ambiente corpo. Um novo exercício no Yoga, uma dieta, um abandono de vício. Tudo isso pode fazer se manifestar um descontentamento que no adulto pode gerar abandono. Mas não deveria ser assim. O bebê não abandona sua meta como o adulto. Ele se irrita, descansa, e volta a sua tarefa genuína de habitar o corpo. É neste primeiro período de aparecimento do descontentamento e da irritabilidade que nos equivocamos com as crianças. Não acolhemos as manifestações de irritabilidade. Até nos aconselham a deixar o bebê chorar para que ele não fique mal-acostumado. Também nos pedem para não pegá-lo no colo, para deixa-lo sozinho no escuro. O bebê que já vive na tensão de descobrir, a cada dia, dezenas de sensações desconhecidas, precisa enfrentar ainda, o desamparo. Inicia-se com o desamparo adulto às manifestações de irritabilidade da criança a falta de crença na vida.

De dois a cinco anos de idade, outra modificação do ambiente corpo nos passa despercebida. O alargamento do corpo, em especial do tronco, que chamamos de repleção. Há acúmulo de energia e o tronco se alarga. Nas minhas observações, nos dois períodos de repleção (2 a 5 anos e 8 a 12 anos) iniciam-se manifestações de força. Entre dois e cinco anos as mordidas, puxões de cabelo, beliscões e empurrões acontecem como manifestação mesmo sem disputa por espaço ou brinquedos. Dos oito aos doze anos essas manifestações retornam com as chamadas lutinhas.

Nas instituições em que trabalho, para a faixa etária de 2 a 5 anos recomendamos brincadeiras em que o uso do tronco e de sua força seja mais que necessário. Objetos pesados para carregar, arrastar, puxar e empurrar são disponibilizados em todos os espaços. Inicialmente inserimos esses objetos compreendendo que, não seria possível que crianças da mesma faixa etária apresentassem esses comportamentos apenas por questões de desenvolvimento psíquico. Em pouco tempo compreendemos que o bom uso da força do tronco direcionada aos objetos ajuda a criança a fazer bom uso da força direcionada aos coleguinhas. Além disso, os objetos grandes e pesados propiciam interação, pois, muitas vezes, para muda-los de lugar é necessário o outro.

Enganam-se os adultos que, para esta faixa etária, utiliza-se de meios como o canto da calma, o canto do pensamento ou proferem longos discursos sobre regras de convivência. Neste período a criança é ação que tem possibilidades pelo acúmulo de energia causada pela repleção.

Nossas experiências mostram que, quanto maior o uso do tronco a criança faz neste período, mais amistosas as relações e, mais tranquilas as suas manifestações de insatisfação.

Mas há ainda outra modificação no ambiente corpo que pode influenciar as manifestações da criança. O estirão que acontece anteriormente ao estirão da puberdade. Aos dois anos os bebês terão metade da altura que irão ter na idade adulta. É também nesse período curto de tempo que os bebês adquirem a marcha e o controle dos braços. O controle dos membros superiores e inferiores dependem e um ambiente em que o bebê possa experimentar diferentes movimentos.

Depois de longo tempo observando como famílias e instituições, nos últimos vinte anos especialmente, organizam os ambientes para as crianças desta faixa etária cheguei a uma conclusão que me permitiu intervenções interessantes. Vejamos que, para o ser humano é o único animal que diferencia a função de mãos e pernas. Enquanto animais como os símios continuam usando as mãos para a locomoção, nos humanos apenas até a fase do engatinhar as mãos tem esse uso. Quando fica de pé a criança passa por um momento único de exploração do ambiente. Observando um bebê que iniciava o processo dos primeiros passos de forma autônoma percebi que ele voltava a engatinhar e levantava-se rindo para caminhar novamente. Esse mesmo bebê tocava tudo que estava próximo em seu caminho.

Os adultos geralmente querem que a criança ande rápido. Compram andadores, colocam-na na posição em pé, e ajudam a criança a treinar passos. Porém, quando a criança começa a andar os adultos dizem: Sente-se. O mesmo se aplica às questões do uso dos braços e mãos. A mão que tudo toca que em tudo mexe a fim de se especializar a ser mão humana recebe logo aos dois anos proibições. Não mexa! Não descubra! Não sinta! .

Tempos depois, sou eu a pessoa que procuram para falar sobre a falta de coordenação motora fina das crianças aos seis anos. Falta de coordenação motora causada por uma não especialização ativa dos membros superiores, mas que é atribuída a um defeito da criança e não a um defeito do ambiente. Ainda pensando em nossa condição humana, e considerando nossos ancestrais caçadores revisito que a manutenção da vida dependia em algum momento de nossos membros superiores e inferiores especializados. Nossos ancestrais corriam, saltavam e lançavam. Mas na escola e em casa repetimos: Não corra, não jogue, não pule!

As proibições para a manifestação dessas nossas características aparecem cada vez mais cedo, e, queremos compensá-las educando uma mente capaz de absorver palavras. Palavras ao vento. Proibição que significa proibir “ser humano” para ser obediente.

Deixar correr, pular e lançar tem sido uma intervenção eficaz, intervenção que permite a criança “ser humana”. Quando planejamos a rotina da criança prevendo as ações de usarem todo o seu corpo vemos diminuídas manifestações intensas de descontentamento.

O ambiente afetivo corpo necessita ser descoberto. Quando possibilitamos tempo a criança e prestamos atenção neste ambiente teremos a possibilidade de ver nascer o afeto da criança pelo corpo do outro, tão humano quanto o seu.

O ambiente afetivo ADULTO.

Já sabemos que um bebê já pode preferir a mãe poucas horas após nascer. Sabemos também que, uma adulta referência para a criança não necessariamente precisa ser a mãe, porém, nos esquecemos de que o adulto, nos primeiros anos de vida, é vivenciado pela criança e não apenas assistido como se fosse um ambiente externo a ele.

Bebês e crianças pequenas são capazes de perceber olhares, gestos e ações do adulto mesmo em situações de duplo vínculo (quando o adulto fala algo diferente do que sente).

Há poucos dias atrás uma educadora me contou a seguinte história:

Uma criança de quatro anos batia apenas nas meninas da sala. A equipe pedagógica havia se utilizado de dezenas de recursos para tentar compreender e intervier no comportamento da criança. Depois de meses lidando com a situação a mãe enfim comunicou a professora que era vítima de violência, e que o pais agredia fisicamente somente a ela e nunca aos filhos meninos.

Este exemplo pode fazer compreender que o comportamento do pai era imitado pela criança, porém, para além da imitação do gesto há um fundo moral captado de forma profunda pela consciência da criança. A agressão é direcionada para o gênero feminino. Este fundo moral invade a criança e ela repete a ação de forma inconsciente. Ao ser questionado sobre o porquê de agredir as meninas, a criança respondia apenas: Não sei!

A responsabilidade do adulto nos primeiros anos de vida da criança é inestimável porque suas ações podem deixar marcas profundas que se transformarão em ações chamadas por educadores e pais de “inexplicáveis”.

Explicamos sempre a moralidade em termos de regras, e pouco pensamos sobre as mensagens morais de ações.

Tanto em casa como nas instituições os adultos carregam marcas traduzidas em comportamentos inexplicáveis.

Nas instituições, tem sido um desafio diário trazer à consciência dos adultos os motivos pelos quais fazem o que fazem, dizem o que dizem e as verdadeiras mensagens sobre o que fazem e o que dizem.

Certa professora me contou que quando uma criança mordia outra ela imediatamente colocava a que mordeu em um berço. Obviamente, a professora pensava estar mantendo as outras crianças em segurança. No entanto, qual é o fundo moral que se instaura na criança? Quando faço algo que o adulto não gosta fico isolada. Isolar é permitido.

Quando alguns pais me dizem que batem nos filhos, pois apanharam e não julgam os pais que bateram logo pergunto: O que você sentia?

As respostas são variadas: Medo, ódio, raiva, tristeza e revolta. E para essas respostas faço outra pergunta: Você acha bom causar medo, raiva, tristeza e revolta em outra pessoa para corrigi-la?

Imediatamente os adultos dizem não!

Não estamos conscientes quanto aos nossos sentimentos em relação aos pais que nos bateram para nos corrigir. Estamos conscientes quando compreendemos que os pais queriam nos corrigir, causaram sentimentos negativos em nós quando tentaram nos corrigir, mas em especial, nos autorizaram, a partir de uma mensagem inconsciente, a machucar alguém mais fraco quando este alguém não obedece nossas ordens. O fundo moral fica evidente quando pensamos que bater em um adulto não é permitido.

Outras mensagens são vivenciadas pelas crianças no ambiente afetivo adulto que mais tarde podem ser manifestadas em comportamentos que não tem explicação racional: A criança que joga os brinquedos por todos os lugares depois de observar o adulto virar a caixa de brinquedos de maneira aleatória. A criança que puxa outra pelo braço, ou empurra da cadeira o coleguinha quando quer sentar depois de vivenciar o adulto que lhe toma nos braços sem cuidado, que lhe coloca na cadeira e a retira bruscamente com movimentos impensados. A criança que não responde ao olhar porque os adultos estavam com o olhar em outros lugares quando ela reivindicou a atenção. A criança que grita porque vive em um ambiente barulhento em que o adulto grita.

O comportamento do adulto é recebido e captado pela criança.

Preocupa-me a distração dos adultos frente às suas próprias ações e às consequências para o mundo.

Quando tocamos com cuidado uma criança, quando falamos devagar com ela, quando lhe permitimos comer, trocar-se, banhar-se com calma, lhe enviamos um fundo moral que não tem a ver com a ação em si. Passamos-lhe a mensagem do cuidado e da tranquilidade como essencial para a vida. O toque suave nela se tornará o toque suave nos objetos e no outro. O cuidado ao falar com ela se revelará no cuidado ao falar com o outro.

O ambiente afetivo FALA.

Palavras revelam conceitos.

No item anterior refletimos um pouco sobre a incongruência de nosso comportamento com o que realmente achamos que pensamos.

O mesmo pode dizer em relação à fala.

Nossa fala carrega uma História Universal. Um sentido que foi construído coletivamente. Somos capazes de ler Mitos e compreender sentidos muito mais profundos sobre nossos dilemas, crenças e pensamentos compartilhados.

A criança bem pequenina não compreende a simbologia de contos de fadas ou de lendas. Ao ouvir histórias como a do chapeuzinho vermelho ela se assusta e chora quando dizemos que o lobo comeu a vovozinha. A criança também não entende aos dois anos a moral da história das fábulas. Sua interpretação se modifica quando ela mesma, de maneira ativa, começa a apropriar-se da linguagem e usá-la de maneira diversa.

Em especial, nesta fase, os adultos não podem usar a desculpa: Não foi isso o que eu quis dizer. A criança capta literalmente a fala.

Usar inconscientemente a fala ,assim como usamos inconscientemente gestos, se torna um perigo para a formação da criança. Mas, em especial não ajudar a criança a se expressar com o uso da fala tem sido uma das principais causas de manifestações com tapas, empurrões e puxões.

Quando as crianças começam a expressar suas insatisfações a partir de choro, tomamos sempre a atitude interromper a manifestação de maneira brusca. Usamos artifícios como chupeta ou tentamos distrair as crianças. Mais adiante, quando ela reclama usando palavras, respondemos sempre: Não foi nada!

Por volta dos quatro anos de idade, a criança pede mais insistentemente a ajuda do adulto para realizar tarefas e para ajudá-la em conflitos com os amigos. A psicologia atual nos adverte a dizer à criança: Resolva você!

Porém, visões mais profundas sobre o desenvolvimento nos mostram que neste momento o que a criança diz quando nos chama é: Gostaria de contar com você!

O respeito por um adulto nasce quando a criança consegue pedir ajuda.

Pedir ajuda não demonstra uma fragilidade da criança, mas o sinal de que a criança admira e venera um adulto.

Ao afastar a criança de nós dizemos a ela que o que ela diz não é importante.

Tempos depois, reclamamos que a criança passou a resolver os problemas “do seu jeito”.

Há ainda outras questões, relacionadas ao ambiente fala, que são vivenciadas tristemente pela criança.

Vivi uma situação em que um bebê de 14 meses gritava insistentemente na hora da refeição.  Os adultos riam achando engraçado o motivo do choro. Acriança sempre almoçava no primeiro, mas, como sua educadora referência havia faltado, outro grupo cuja educadora referência estava presente havia saído primeiro. A criança se debatia e as educadoras riam da “birra”. Agachei-me e perguntei para a criança mantendo-me um pouco afastada: Você quer comer? Ela me olhou na hora. Levei-a para o lado de fora e a servi. Ela imediatamente se colocou a comer tranquilamente.

Este exemplo nos mostra quão negligenciadas são as expressões de descontentamento de uma criança. Para os adultos as expressões sérias das crianças nos parecem engraçadinhas.

O mesmo acontece em relação os comentários sobre as falhas dos pais. Quantas vezes ouvi expressões como: Essa mãe não penteia o cabelo dessa criança ou, ela esqueceu de novo a fralda! Ou, que roupa é essa que sua mãe colocou em você?

Há ainda o uso das palavras rudes como: Você não faz nada direito! Tinha que ser você! Por que você não faz igual seu amigo?

Muitas vezes essas palavras são direcionadas às crianças na frente de outras crianças ou adultos e assim, vamos novamente dizendo à ela, e as outras crianças, à partir de nosso exemplo, que é autorizado falar tudo o que pensamos ,sem preocupação com os sentimentos que essas falas podem causar.

A indicação que sempre faço aos adultos é que, na dúvida sobre o que dizer, olhe a criança e faça uma pergunta amistosa.

Ao fazer perguntas amistosas ajudamos a criança a reelaborar o que está vivendo ou sentindo. Também lhe damos o exemplo que pode lhe ajudar a resolver várias questões. Perguntar pode ser um caminho de relacionar-se com o outro.

Um caminho para a aprendizagem das relações amistosas: O ambiente afetivo BRINCAR.

Se você me acompanhou compreender até aqui, compreendeu o ambiente corpo, adulto e fala. Mas fico realizada se na compreensão da relação entre estes ambientes você tenha se perguntado: Mas enfim, se as agressões tem relação com as vivências do ambiente corpo, do ambiente adulto e do ambiente fala, como as crianças podem construir e compreender regras se algum destes ambientes não puder ser vivenciado de maneira adequada?

Obviamente, todos os seres humanos, assim como todos os outros seres passam por intempéries. Uma planta, por exemplo, pode mudar o sentido de crescimento para acompanhar o sol quando colocada em um ambiente em que a luz não lhe alcança.

Os seres humanos, tendo suas necessidades básicas atendidas, caminham para o desenvolvimento. E o desenvolvimento humano só é possível na coletividade.

Portanto, mesmo com intempéries, nós humanos queremos estar como outro, pois somos seres das relações. Relacionar-se exige aprendizagem e não há melhor ambiente de relação do que o ambiente afetivo brincar.

Observe o percurso de uma criança no brincar e novamente encontrará incongruências do percurso evolutivo para a aprendizagem das relações.

As relações incongruentes, fomentadas a maioria das vezes pelos adultos, não permitem o desenvolvimento da compreensão das regras e levam ao conflito.

Um bebê interessa- se primeiramente pelo seu corpo. Até o terceiro ou quarto mês suas experiências corpóreas são o primeiro foco de sua atenção. Adiante o bebê se interessa por objetos que aparecem no seu campo de visão. No segundo ano de vida a criança é capaz e colecionar objetos parecidos e sabe onde procurar peças que abandonou em outro momento do dia. É no período de dois anos que a criança começa a ter prazer em colecionar e classificar esses objetos.

Esse comportamento da criança é entendido pela psicologia clássica como egocentrismo. Em visões mais abrangentes do desenvolvimento a criança não age assim por ser egocêntrica. Ela simplesmente precisa agir assim, pois está interessada em compreender a ordem das coisas. Que objetos são semelhantes? Como as quantidades aumentam e diminuem? Como guardar? Como organizar? A criança começa a se interessar pelas regras, mas regras que ela mesma cria.

Incongruente é a ação dos educadores ao exigirem que a criança divida os brinquedos nesse momento quando a criança está concentrada em experimentar todas as possibilidades desses brinquedos. Congruência haveria em disponibilizar brinquedos simples e em grandes quantidades. Os adultos poderiam observar que as crianças dessa fase brincam sozinhas experimentam todas as possibilidades dos objetos.

Minhas observações ao longo de vinte anos demonstram que as brincadeiras em grupo ocorrem inicialmente em pares. Elas podem se iniciar muito mais cedo do que se imaginam. Observei bebês de dez meses brincarem juntos com divisão de tarefas bem definidas. Mesmo na ausência da fala a regra é entendida pelo par. Mas é por volta do final dos dois anos e início de três anos que a brincadeira em pares é mais frequente.

Incongruência é querer que muitas crianças realizem tarefas coletivas e dirigidas como,  manter-se na roda, em fila ou em mesas .Nestas ocasiões, as crianças se dispersam e o educador tem a impressão de que as crianças estão desatentas. É também nessas ocasiões, e em ambientes fechados que ocorre o maior número de mordidas.

Leve as crianças para um espaço aberto nesta faixa etária e surpreenda-se com a quantidade de regras estabelecidas para a brincadeira em pares.

Ressalto novamente a idade de quatro anos como fundamental para a aprendizagem de regras. Lembro novamente de que nesta faixa etária a criança precisa ter admiração por um adulto. Na antroposofia, o nascimento do respeito só é possível quando uma criança é capaz de pedir ajuda. Mas, para pedir ajuda a criança precisa,  primeiro, fazer uma análise e compreender suas capacidades e incapacidades. Compreendendo sua incapacidade pedirá ajuda ao adulto.

É incongruente que os adultos não permitam que a criança possa pedir ajuda e que lhe devolvam o problema. Congruente é oferecer a ajuda e colocar-se ao lado da criança para ajudá-la pelo exemplo, a resolver suas questões.

Depois de vivenciar as estratégias dos adultos a criança se interessará por realizar sozinha ao brincar. Irá construir grandes cidades, lagos, bolinhos navios, torres e depois irá destruí-los para construir novamente. Agora ela tem entre 4 e 5 anos. Encontra-se com os amigos que também se interessam em construir e desmanchar. Aos seis anos se inicia a fase do grupo. Grupos de crianças se unem para realizar brincadeiras de papéis que nos parecem verdadeiras peças teatrais.

Incongruência é fazer com que crianças de quatro anos passem longas horas completando apostilas no momento em que deviam estar construindo. Incongruente é separar as crianças de 6 anos em carteiras individuais quando, depois de longo tempo, a brincadeira em grupos maiores encontra terreno fértil para acontecer.

Conguente é oferecer possibilidades de criação em pequenos grupos para as crianças de 5 anos encorajá-las a viver e aprender em grupo aos 6 anos.

Um caminho maior para compreender os conflitos – sem considerações finais.

Deparamo-nos com situações em nossas vidas em que há incongruências. Nem sempre somos capazes de resolver algo sozinhos, nem sempre queremos estar em grupo, nem sempre queremos compartilhar, nem sempre queremos seguir as regras. Os nossos conflitos internos acabam sendo conflitos do mundo. Desejos não compartilhados e incongruentes.

Um caminho para ajudar as crianças a viverem em harmonia é ajudá-las, dentro de seu nível de desenvolvimento a se perceberem.

Como vimos neste singelo texto, para ajudar uma criança a perceber-se o adulto precisa estar pronto para perceber-se primeiro.

Um convite a todos vocês que me leem é para a escrita de seus próprios mapas afetivos.

Procurem dentro de suas histórias corporais, familiares e escolares descobrir a lente que te faz vivenciar situações e conflito como situações intransponíveis.

Depois disto, passe a observar com mais afinco as ações cotidianas das crianças. Mais do que em qualquer livro, as crianças são fonte inesgotável de conhecimento sobre elas mesmas.

As crianças são especialistas em SER.

Até breve!

Colaboradores

Leila Oliveira

leilabob9@hotmail.com