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09/11/2018 Relações Comunitárias

Educação Social: uma perspectiva possível em comunidades tradicionais

Olá caros leitores da EstimuladaMente. Juntos novamente e desta vez para falarmos de possibilidades educativas.

Seguindo o fluxo desta edição, buscaremos dar voz aos grupos de comunidades tradicionais, a partir da importância de definir o traçado que a Educação Social tem deixado e, principalmente, de fortalecer as discussões, reivindicações e lutas empreendidas pelos Povos e Comunidades Tradicionais, já que estão longe de se concretizarem, e ainda mais distantes do ideal.

Educação Social

Começo descrevendo o que entendo por Educação, pois este entendimento norteia o que apresentarei adiante. E neste sentido, acredito que não há como pensar em educação sem concebê-la enquanto um instrumento político que se vincula à ideologia, à estrutura social, à cultura e ao poder que, hoje, tem como princípio a construção da história social demarcada pelo protagonismo dos indivíduos envolvidos e colaborativamente organizados, a partir da perspectiva intertranscultural, que parte do reconhecimento do sujeito participante.

Partindo-se deste conceito de que Educação é movimento e construção sócio-histórica, a Instituição Educacional deve ter como característica primeira, em todos os níveis e modalidades, ser um espaço emancipatório e libertador, que represente o cenário de socialização e de mudanças, já que se configura como um ambiente social.

E para que isto aconteça não podemos deixar de considerar como passo inicial deste processo a oferta da Educação, tanto no espaço sistemático (Educação Formal), também no espaço não-formal (na perspectiva da Educação Social), quanto no espaço assistemático (aprendizagem sociocultural) de modo que seja priorizada a interseção e interlocução da aprendizagem intra e extra muros, tendo como princípio a interação social como ferramenta do conhecimento, bem como a aprendizagem significativa e a construção participativa do conhecimento.

A Educação Social está contida entre esses múltiplos mecanismos e ampla diversidade de arranjos educacionais citados acima, logo, é necessária uma constante análise sobre a forma como ela vem sendo ofertada, bem como se há monitoramento e avaliação destes processos que diagnostiquem eventuais falhas e descaminhos, de modo que se possa repensar, adaptar, adequar e, consequentemente, garantir que a Educação Social esteja sendo cumprida com sua função educacional nos princípios que descrevemos como conceito de Educação.

Para tanto, devemos ter cuidado para que a Educação Social não seja confundida com a modalidade de qualificação profissional e/ou cursos livres, já que está inteiramente voltada para a formação de jovens e adultos, ou ainda, reduzida à ação de cunho social por ser ofertada em espaços “informais”.

Equívocos muito comuns, tendo em vista que a Educação Social é realizada em espaços onde as ações educativas são pensadas, articuladas e praticadas a partir de uma dinâmica e ação pedagógica que se difere da Educação nos espaços sistemáticos (Instituições escolares). São tempos e espaços planejados pelos Agentes Socioeducacionais (formador/mediador) de forma diferente, isto é, de acordo com realidades diversas, já que a organização da Educação Social deve se adequar ao público que atende e não o contrário. No entanto, não significa que não haja uma estrutura (currículo contextualizado, metodologia, avaliação etc) para que aconteça de forma a atingir os objetivos educacionais.

Diante do que já falamos, a preocupação imediata que surge é analisar que currículo e demais documentos e políticas estão postos e propostos para a Educação Social (não-formal) e a partir de então levar ao entendimento dos Agentes Socioeducacionais de que estes instrumentos só podem ter eficácia e se concretizar enquanto mudança educacional, se forem utilizados enquanto norteadores, de modo que: não desprezem as especificidades dos grupos a que se destina a ação educativa; e igualmente, que as concepções político-ideológicas dos grupos locais de poder não mais influenciem na concretização de um currículo justo, democrático, incluinte e  socializador, cabendo a todos os envolvidos, em último caso representado pela pessoa do Agente Socioeducacional, fazer com que os direitos de aprendizagem sejam garantidos de forma democrática, concretizável e em sintonia com os valores, tradições, costumes, cultura e hábitos do local.

O cuidado e vigilância sobre tais instrumentos deve ser condição prioritária para fomentar discussões referentes à Educação Social, evitando o equívoco citado de considerá-la como educação assistemática, pois como vimos, a Educação Social, ainda que de forma específica, requer organização, planejamento, estruturação curricular, avaliação e outros tantos instrumentos educacionais “formais” que articulem teoria e metodologia resultando em conhecimento numa perspectiva de aprendizagem significativa.

Em suma, apesar de todas as mudanças já ocorridas na estrutura educacional, tanto no que se refere às conquistas políticas, quanto às diversas expressões pedagógicas, é necessário manter a busca pelas mudanças e alçar novas formas de pensar Educação por meio de múltiplos mecanismos e ampla diversidade de arranjos educacionais, escolares, familiares e sociais, de forma coletiva, participativa e democrática, sem nos esquecermos dos objetivos primeiros da educação: a emancipação intelectual, a inclusão social, a participação cidadã e, acima de tudo, o desenvolvimento humano.

 

Educação Social: uma perspectiva possível em comunidades tradicionais.

De acordo com o Decreto nº 13.247/2011, são Povos e Comunidades Tradicionais – PCTs:

I ‐ Povos e Comunidades Tradicionais: aqueles que ocupam ou reivindicam seus Territórios Tradicionais, de forma permanente ou temporária, tendo como referência sua ancestralidade e reconhecendo‐se a partir de seu pertencimento baseado na identidade étnica e na auto‐definição, e que conservam suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, línguas específicas e relação coletiva com o meio ambiente que são determinantes na preservação e manutenção de seu patrimônio material e imaterial, através da sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando práticas, inovações e conhecimentos gerados e transmitidos pela tradição. [2]

Sendo mais específica, os povos e comunidades tradicionais, são os povos Indígenas, Quilombolas, Pescadores Artesanais, Marisqueiras, Ribeirinhos, Povos de terreiro, Ciganos, Caatingueiros, Seringueiros, Praieiros, Sertanejos, Castanheiros, Comunidades de Fundo de Pasto, Faxinalenses, Varjeiros, Caiçaras, Jangadeiros, Campeiros, Geraizeiros, Veredeiros, entre outros.

É importante destacar do texto da legislação o fragmento: “reconhecendo‐se a partir de seu pertencimento baseado na identidade étnica e na auto‐definição”, já que historicamente há uma diversidade grande de grupos que são considerados povos tradicionais, e é muito evidente a heterogeneidade que há entre autoidentificação étnica e formação de grupo. Logo, os povos que compõem as comunidades tradicionais estão intimamente ligados a concepção de tradição e de pertença, que se dá a partir da autoidentificação com as características que o torna único em relação a quaisquer outros, o que torna o indivíduo um portador de uma identidade etnicamente diferenciada.

Devemos compreender etnia enquanto a união de grupos de indivíduos que compartilham caracteres linguísticos, culturais, somáticos, relação com o território e a religiosidade em comum. Agora que entendemos o conceito de etnicidade, é necessário correlacioná-la ao surgimento e fortalecimento de políticas de ações afirmativas, muitas vezes guiadas por questões assimilacionistas ou raciais, do que pelas noções de etnicidade, de grupo étnico e de identidade étnica. Tal fato leva, novamente, a um equívoco, na medida em que uniformiza os diferentes grupos de modo a não considerar as especificidades de cada um.

Refletir sobre estas incoerências ao longo da história da humanidade quando diz respeito à raça/etnia, diante das contradições analíticas e decisórias quando se trata de ações universalizantes de direitos humanos, é prioritário para compreendermos a importância, a necessidade e o impacto de ações voltadas para estes grupos da sociedade brasileira. Também é necessário para repensar como e por quem serão pensadas as políticas universais a fim de não deixar esquecer no caminho o “para quem” e considerando em primeiro plano a plurietnicidade e a multiculturalidade, bem como os diversos arranjos e configurações sociopolíticas enfrentadas.

Devemos nos orientar no potencial de organização social e política para construir uma nova modalidade de organização cidadã na perspectiva democrática, que tenha como princípio a direção e o consenso ideológico de uma sociedade pluricultural, cuja fundamentação de consciência identitária/étnica busque diminuir o êxodo rural, a desfragmentação das comunidades tradicionais, a exclusão social, ao tempo em que se valoriza a diversidade cultural, a tradição e as origens enquanto valores humanos, socializadores e coletivos.

Ora, a ideia de organização social liga-se ao propósito social dos grupos coletivos, ou seja, às relações comunitárias, cujas regras governam o comportamento orgânico da comunidade, ultrapassando o interesse singular do indivíduo e orientando as escolhas que têm como referência as normas dadas pela estrutura social e, assim, promovendo mediações através da criação de arranjos do comportamento dos indivíduos na construção da vida social.

Deve ser prioritariamente praticado de acordo com os pilares dos princípios fundamentais de desenvolvimento e respeito humanos, em que os indivíduos possam se articular a partir da experiência possível nos espaços de articulação social, cultural, econômico e político, agindo na estruturação de uma nova realidade, através dos significados simbólicos, tradicionais, morais e éticos.

Neste contexto, a organização social quando realizada a partir do acolhimento do todo coletivo e sob a perspectiva de gestão participativa deverá se apoiar na autoidentificação étnica, a partir das especificidades e particularidades dos grupos envolvidos sem deixar de se articular na pluralidade das relações da sociedade como um todo, tornando-se espaço legitimado para trabalhar com a ideia de responsabilização, na qual os sujeitos devem se sentir parte do contexto, reconhecendo a importância de suas ações no processo de garantir a sustentabilidade, e dando um novo sentido aos processos de subsistência seu e de suas famílias e de seu grupo étnico.

Assim, a Educação Social figura como possibilidade metodológica possível para ações a serem desenvolvidas neste contexto. Porém, é importante reforçar que ao discutir a Educação no contexto dos Povos Tradicionais é necessário analisar que nestes últimos anos, mesmo com uma legislação favorável, não se tem ainda um sistema de educação que de fato dê conta, se comprometa e se estruture para colocar as redefinições da inserção da história [real], tradições e reconhecimento dos valores culturais, entre outros, em prática e trazer para o espaço educacional as especificidades do modo de vida dos povos tradicionais.

Logo, a Educação Social aqui proposta, tem como norteador a Educação Comunitária, apresentada como uma Educação que

não se restringe à Escolarização ou aos demais processos tidos como formais, mas abrange processos diversos de ensino e aprendizagem e socialização dos conhecimentos que são essenciais para a reprodução das culturas, a gestão territorial, a autonomia e a sustentabilidade dos Povos Tradicionais. Assim, é papel do Estado conhecer os diferentes processos educativos, apoiá-los e fortalecê-los, respeitando as formas próprias de organização social.

As ações são de interesse das comunidades e todos participam independente do gênero, faixa etária e escolaridade prévia, a depender dos critérios de cada Povo, conforme os exemplos abaixo:

  • Iniciativas das comunidades voltadas ao fortalecimento de práticas educativas que valorizam os conhecimentos próprios, os cuidados relacionados ao meio ambiente e ao bem estar da comunidade, visando à melhoria da qualidade de vida nas comunidades;
  • Valorização e apoio a práticas culturais associadas aos processos educativos próprios das crenças e culturais afroeducacionais;
  • Reflexão sobre as relações sociais com o entorno e sobre a proteção territorial e ambiental;
  • Apoio à formação diferenciada de profissionais (professores, técnicos em enfermagem, técnicos em agroecologia etc), para que possam atuar como pesquisadores e multiplicadores de práticas sustentáveis e dos conhecimentos próprios. [3]

Deste modo, toda e qualquer ação projetada para essas comunidades devem prioritariamente conceber esta coletividade a partir da identificação cultural de pertencimento, da autopercepção étnica e/ou de grupos sociais, devendo ser pautada no sentido de contemplar seus anseios e necessidades, reconhecendo as diversidades das demandas e garantindo os direitos fundamentais desses grupos, há muito considerados minoritários, marginalizados e invisibilizados na esfera pública, trazendo-os ao cenário das efetivações políticas como protagonistas das decisões que lhes são diretamente dirigidas, assim fazendo-os participantes da própria mudança.

A partir do exposto, é primordial que haja uma mudança na forma de pensar a construção de uma Educação para Povos e Comunidades Tradicionais, na dinâmica aqui proposta de Educação social. Também é necessário pensar o papel dos jovens nas instâncias de ação e decisão social, econômica e política que extrapolem os espaços privados-familiares e os insira no espaço público enquanto protagonistas, de modo que estes deixem de ser estatísticas negativas e passem a fazer parte da solução, do desenvolvimento, da ascensão da sociedade na elevação dos índices de desenvolvimento humano e, como consequência, na elevação da qualidade de vida.

Vê-se que ainda há muito caminho a ser percorrido na busca pela garantia de direitos. Toda esta explanação foi aqui apresentada, pois se estou tratando a Educação enquanto instrumento de emancipação e empoderamento, enquanto impulsionador de inclusão e participação social, como não considerar as dificuldades enfrentadas pelos PCTs, vez que estas dificuldades muitas vezes são motivos que os impedem de concluir seus estudos nos espaços formais de Educação ou quando o fazem não lhes dão possibilidades concretas de inserção social e participação cidadã.

Deste modo, claro está que, a Educação Social precisa ser pensada dada esta realidade e para tanto é essencial que compreendamos os diferentes espaços não-formais de educação para que possamos atuar de maneira coerente, ética e condizente com as necessidades desta camada da população, sem deixar de ter como norteador principal o repeito à cultura, à ancestralidade e à tradição.

NOTAS:

[1] Adaptação do Trabalho de Conclusão de Curso, de autoria própria (ROCHA, Vania Conceição. Educação: uma perspectiva possível em comunidades tradicionais. 2015. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Coordenação Pedagógica). Programa Nacional Escola de Gestores da Educação Básica Pública, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Bahia).

[2] BAHIA. Decreto nº 13.247, de 30 de agosto de 2011. Dispõe sobre a Comissão Estadual para a Sustentabilidade dos Povos e Comunidades Tradicionais – CESPCT. Brasília, 2011. Disponível em: <http://fernandatanure.blogspot.com.br/2011/08/decretoestadualn13247de30de.html>

[2] FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI. Educação Comunitária. Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/processos-educativos-comunitarios?start=1>

Colaboradores

Vania Rocha

vaniarochasocial@gmail.com