Publicidade
02/08/2019 Sustentabilidade

Uma verdade necessária – Por que ainda preferem a MENTIRA bem vestida do que a VERDADE nua e crua?

O foco principal do livro e documentário Uma Verdade Inconveniente lançado em 2006 era a emergência planetária do aquecimento global e o que nós poderíamos fazer sobre isso. Na Introdução o ex-vice-presidente Al Gore fala um pouco sobre sua relação com a Natureza desde a infância: os verões na fazenda, sobre o livro Primavera Silenciosa de Rachel Carson – um dos mais importantes para o movimento ecológico – que a sua mãe costumava ler para ele e sua irmã quando eram crianças. Até chegar a ter o primeiro contato com a ideia do aquecimento global com o professor Roger Revelle no colégio.
Depois da disputa eleitoral de 2000, cuja eleição Al Gore perdeu para Bush, ele passou a viajar pelo mundo compartilhando informações sobre o aquecimento global. Gore fala: “eu estou mudando mentes, mas é um processo lento.” Então aconteceu uma palestra (slide show) na primavera de 2005 em Los Angeles, promovido pela ambientalista e produtora de filmes Laurie David. Ela e Lawrence Bender, outra produtora do cinema, sugeriram transformar a palestra em filme e o apresentaram a David Guggenheim que dirigiu o premiado documentário. Qual era o principal desafio para Gore? Fazer a mensagem chegar a um número maior de pessoas sem perder a credibilidade da ciência em prol do entretenimento.
O Slide Show, o documentário e o livro começam com a imagem do planeta Terra como a nossa casa comum. Apesar do grande objetivo do projeto Uma verdade inconveniente ser a divulgação do fato incontestável da Crise Climática, Al Gore pontuou claramente que os países e as populações mais pobres serão as principais vítimas do Aquecimento Global. A exemplo do desaparecimento do lago Chad que era o sexto maior do mundo e naquele momento restava apenas 1/20 do seu tamanho original. Enquanto os EUA representavam 25% das emissões de gases de efeito estufa (GEE), o continente africano todo contribuía com apenas 5%. Por isso para Al Gore, os países mais desenvolvidos têm o dever moral de ajudar aos países africanos e asiáticos a encontrar soluções nessa crise.
Tanto o livro quanto o documentário alternam informações sobre a Crise Climática e fatos da vida de Al Gore. Dentre esses acontecimentos pessoais estão o grave acidente do seu filho mais novo aos 6 anos e a morte da sua irmã com câncer de pulmão. Nos dois momentos Al Gore, coloca a crise como uma oportunidade de aprendizado e mudança. Sobre a indústria do tabagismo, mostra as estratégias que usaram para convencer o mundo que não havia relação entre o câncer e o cigarro, usando inclusive depoimentos médicos. E fez um paralelo com a indústria do petróleo e as pressões que tais companhias exercem principalmente sobre a classe política através de doações nas campanhas eleitorais e nos meios de comunicação com propaganda enganosa.
Gore põe no livro que o acidente do filho foi um ponto de virada na sua vida pois a dor profunda o fez pensar sobre suas reais prioridades, reavaliar a natureza do serviço público e o verdadeiro significado da palavra SERVIR. No período de recuperação do filho ele começou a escrever o seu primeiro livro: Earth in the balance. Como a vida é feita de escolhas, o político escolheu estar mais perto da família e colocou o meio ambiente global como foco principal dos seus esforços.
“Cada um de nós é uma causa do aquecimento global; mas cada um de nós pode se tornar parte da solução – em nossas decisões sobre o produto que compramos, a eletricidade que usamos, o carro que dirigimos, o nosso estilo de vida. Podemos até fazer opções que reduzam a zero as nossas emissões de carbono.” Al Gore
Como já sabemos que somos parte do PROBLEMA, podemos AGORA ser parte da SOLUÇÃO? A crise ambiental é fato conhecido de todos, no entanto, como todo assunto que vira moda, corre o risco de ser banalizada. Os problemas ambientais não estão isolados de toda uma conjuntura social, cultural e econômica. Muitos pensavam no passado que problemas ambientais estavam distantes e eram pontuais. Os comentários mais comuns: “Extinção de animais, o que tenho a ver com isso?”, “Desmatamento de florestas, isso está tão longe da cidade onde vivo.” Com as Mudanças Climáticas, e as fortes campanhas e ações da ONU, o mundo começou a perceber que de fato, a degradação ambiental tem consequências negativas em todo o planeta. Mas ainda assim, desconhecemos como o indivíduo pode colaborar de maneira efetiva para amenizar a crise ambiental. Vamos pensar nas florestas: boa parte do desmatamento acontece por atividades humanas, muitas vezes ilegais, como extrativismo mineral, madeireiro ou agropecuária de latifúndios. Esses recursos retirados ou produzidos com a destruição das florestas são usados para fabricar produtos que consumimos nos mais diversos comércios do mundo. Então o consumo é um ponto crucial do problema e da solução.
Um pouco de História
No ano em que o livro Uma verdade inconveniente foi lançado, concomitantemente houve o lançamento do filme que ganhou o Oscar de melhor documentário e o próprio Al Gore ao lado do IPCC (Intergovernanmental Panel Climate Change) foi indicado e ganhou o prêmio Nobel da Paz.
Para entender melhor o porque que tais inciativas (livro e documentário) foram premiadas, precisamos conhecer um pouco a história do movimento ambientalista em torno das mudanças climáticas. Primeiro, as mudanças climáticas não são simples alterações de temperatura, mas uma sequência de eventos coletados e analisados que comprovam valores acima da média climática registrada por institutos de meteorologia. Sabemos que nos 4,5 bilhões de anos do planeta, várias mudanças aconteceram entre períodos glacias e interglaciais devido perturbações orbitais, atividade solar, impactos de meteoros, erupções vulcânicas e a ação humana. Apesar dessas ameaças externas, o modelo de vida humana após a revolução industrial foi o que mais transformou negativamente o meio ambiente. O fato é que os humanos mais do que outras espécies do planeta dependem completamente dos sistemas naturais em equilíbrio para continuar existindo.
Então como a humanidade pode destruir os meios fundamentais para sua própria sobrevivência? Por ignorância ou ausência de valores éticos.
Vamos voltar um pouco na história. Apesar das primeiras máquinas a vapor datarem do período Helenístico, foi em 1712 que o britânico Thomas Newcomen criou um motor a vapor amplamente usado e depois aperfeiçoado por James Watt (1969).
Esse foi um passo decisivo para acontecer a Primeira Revolução Industrial com maior produção e melhores meios de transporte com barcos e trens a vapor, para distribuir as mercadorias para diversos lugares. Importante destacar que até 1800 a população mundial não chegava a 1 bilhão de pessoas.
Com o progresso, houve o aumento da produção exigindo mais recursos naturais e gerando mais poluição. No século XIX o físico francês Joseph Fourier (1824) falou pela primeira vez do Efeito Estufa e o físico irlandês John Tyndall (1861) provou que esse efeito era resultante dos vapores de água e outros gases. Os carros automotores criados também neste século, em 1886, passaram a contribuir para aumentar a poluição e para o agravamento do Efeito Estufa. A poluição do ar foi a consequência mais evidente e imediata da industrialização. Já em 1927, as emissões de carbono alcançaram 1 bilhão de toneladas no ano.
James Hansen, diretor da NASA, levou o tema aquecimento global para o congresso dos Estados Unidos em 1988 e foi ouvido por políticos que suavam diante de um junho extremamente quente em Washington. Mesmo com um planeta dividido entre capitalismo e comunismo, cientistas se debruçaram sobre o tema e em 1988, o IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) das Nações Unidas, divulgou o seu primeiro relatório. Centenas de cientistas de 25 países demonstraram a partir de dados minuciosos o movimento da natureza desde que a atmosfera passou a ser bombardeada por toneladas de gases de efeito estufa. Alguns dados do primeiro relatório:
1. Aumento da temperatura média global, principalmente no sul da Europa e América do Norte;
2. Fortes precipitações de verão, solo úmido e outros fenômenos extremos;
3. Expansão térmica dos oceanos e derretimento de gelo terrestre;
4. Aumento do nível do mar de cerca de seis centímetros a cada década ameaçando regiões costeiras e insulares.
Até o ano de 2006 aconteceram vários eventos promovidos pela ONU com o objetivo de debater as questões ambientais e principalmente o Aquecimento Global. A partir da Conferência de Toronto (1988) os relatórios do IPCC passaram a ser compartilhados com as nações. Em Genebra (1990) na Suíça foi discutido a produção de um tratado internacional para o clima para ser apresentado no Rio-92 ou Eco-92, uma das maiores conferências ambientais da história, que aconteceu no Brasil, quando foi criada a Convenção-Quadro das Nações Unidas para o Meio Ambiente para debater sobre as mudanças climáticas todos os anos.
Em 1995 aconteceu em Berlim a primeira Conferência das Partes (COP-1) onde definiram metas para o protocolo de Kyoto. Em 1996 voltaram à Genebra para a COP-2, quando os relatórios do IPCC ganham o status de fonte científica segura para direcionar as decisões relativas ao meio ambiente em todo o mundo e para isso, países em desenvolvimento receberiam apoio financeiro para desenvolver programas de redução de emissão de GEE.
A Conferência de Kyoto (1997) no Japão, ou COP-3, foi uma das mais importantes pois gerou um documento com metas de redução de emissão de GEE em 5,2% e exigia que o acordo fosse assinado principalmente pelos países desenvolvidos que correspondiam a maior parte das emissões poluentes. Nessa COP havia um claro conflito entre a União Europeia e os Estados Unidos. Então criaram uma estratégia para estimular a sustentabilidade com o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) e os certificados de carbono.
Depois de Kyoto aconteceram COPs em Buenos Aires (1998), Bonn (1999), Haia (2000), onde os conflitos entre os Estados Unidos e a União Europeia aumentaram devido à posição de George W. Bush que não ratificou o acordo alegando altos custos para o país atingir tais metas de redução de GEE. Em 2001 aconteceram duas COPs, uma em Bonn e outra em Marrakesh. A COP-8 em Nova Délhi (2002) além de concordarem com as regras do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, houve um debate sobre fontes renováveis e a participação de ONGs e empresas privadas que ratificaram o protocolo de Kyoto e mostraram projetos sobre créditos de carbono.
As próximas COPs até 2006, quando o livro e o documentário de Al Gore foram lançados, não demonstravam boas perspectivas para crise climática, pois além dos EUA continuarem fora do acordo, países em desenvolvimento como Brasil, China e índia passaram a contribuir com mais emissões de gases. Apenas a UE determinou ações efetivas de redução até 30% de emissões de GEE para 2030 e de 80% até 2050.
Conclusão: o mundo precisava saber mais sobre a crise climática e o livro / documentário An Inconvenient Truth de alguma maneira foi um alarme necessário.
Depois de “Uma verdade inconveniente”
Apesar da discussão sobre as mudanças climáticas serem antigas, a adoção de práticas menos poluentes acontece de maneira lenta, e muitas vezes com resultados incipientes para redução na emissão dos gases de efeito estufa. Com a alternância de poder nos países desenvolvidos democráticos, principalmente nos Estados Unidos, as políticas ambientais refletem a visão dos seus líderes e apoiadores. Depois de George W. Bush, os Estados Unidos elegeram para presidente Barack Obama do Partido Democrata, e isso foi determinante para que o maior país poluidor do mundo aderisse às políticas ambientais da ONU e participasse ativamente nas negociações para assinatura do Acordo de Paris em 2015. Infelizmente com a eleição de Donald Trump do Partido Republicano, as ações ambientais da própria ONU e o acordo de Paris encontram-se ameaçados.
A ONU assumiu a liderança no enfrentamento às mudanças climáticas desde 1988 e em 2007, o documentário e o livro renderam para Al Gore e IPCC (organização científico-política ligada à ONU) o Prêmio Nobel da Paz por todas as pesquisas e divulgação do tema. O fato é que há uma resistência muito grande de um grupo de cientistas e corporações que ganham muito com o uso dos produtos derivados do Petróleo. Os combustíveis fósseis são o maior vilão da crise climática. O NIPCC (Nongovernmental International Panel on Climate Change) e as organizações que o mantêm: Science and Environmental Policy Project (SEPP), CO2 Science, The Heartland Institute, foram criados em 2003 com o principal objetivo de fazer pesquisas e ações que questionam os resultados das pesquisas do IPCC que afirmam ser o Aquecimento Global, a principal consequência do uso dos combustíveis fósseis. Como eles propõem no site oficial do grupo, eles querem oferecer uma segunda opinião por não acreditarem que as mudanças climáticas foram causadas pelas atividades humanas que emitem gases de efeito estufa.
Os dados podem até não convencer, mas a divulgação das catástrofes ambientais que apareceram de maneira ostensiva no filme “Uma verdade inconveniente” impressionaram às pessoas. O objetivo era chamar a atenção para a crise ambiental, mas muitos passaram a acreditar que nada poderia ser feito para reverter esse destino trágico. Uma Humanidade impotente diante da revolta da Natureza. Muitos outros, também por desinformação, faça chuva ou faça Sol, diante de qualquer alteração nas estações, alegam que é resultado das mudanças climáticas. Tanto o IPCC e o NIPCC têm critérios rigorosos para apoiar suas teorias. Nem todas as catástrofes ambientais resultam das mudanças climáticas, mas sem dúvida, a crise climática resulta do modelo de vida humano consumista e predatório, principalmente nos países mais desenvolvidos.
O documentário de Al Gore passou a ser uma ferramenta de alerta ambiental. No Brasil e no mundo inspirou diversos trabalhos dentro e fora das universidades. A editora Manole no Brasil, a fim de neutralizar as emissões relativas à produção e a distribuição de uma tiragem de 5 mil exemplares do livro “Uma verdade inconveniente” foram plantadas 136 árvores às margens do Rio Gregório, Sítio Santa Maria no município de São Carlos no estado de São Paulo. O projeto de restauro florestal foi realizado pela The Green Initiative. Na Universidade Federal de São João Del-Rei, o documentário foi usado na Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (2011) para debater as mudanças climáticas com alunos do ensino médio. A engenheira florestal e doutoranda em 2007, Michele Walter fez uma resenha para revista MultiCiência – UniCamp, destacando os principais pontos do livro, os pensamentos divergentes dos grupos envolvidos (IPCC e NIPCC) e a impressão dela de que o documentário era uma estratégia de promoção política do autor.
De certo que os planos políticos de Al Gore até o momento se restringiram às atuações nos grandes impasses ambientais. Nesses doze últimos anos aconteceram várias COPs e eventos ambientais, e entre os mais importantes estão o RIO+20 no Brasil em 2012, o lançamento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável 2030 e o Acordo de Paris em 2015. Estes encontros estão presentes no segundo documentário do ex-vice-presidente Al Gore: Uma verdade mais inconveniente ou An Inconvenient sequel: truth to power. A crise climática continua despertando atenção e urgência, mas os projetos para o uso de energias renováveis, o apoio de líderes importantes em outros países e em vários estados norte americanos, inclusive do partido Republicano, e a mobilização pública em vários pontos do globo são sinais de esperança para dias melhores para humanidade no planeta Terra.
Alguns impasses continuam nos níveis político e econômico. Dois bons exemplos: a estratégia para conseguir financiamento do Banco Mundial para implantação de usinas de energia renovável na Índia, país que possui grande desigualdade social e boa parte da população sem acesso à energia e que optava por usinas de carvão; outra situação tensa, trata-se das pressões de Trump à Arábia Saudita para aumentar a produção de petróleo. O IPCC engatou uma forte campanha para limitar o aquecimento global em 1,5ºC. E isso só será possível se países desenvolvidos como os Estados Unidos e os países membros da União Europeia reduzirem suas emissões de GEE, e países superpopulosos e emergentes como a China, a Índia e o Brasil alcançarem o tão desejado desenvolvimento de maneira sustentável. Vejam no gráfico os dados atuais sobre as emissões de CO2:
Os maiores obstáculos para a crise ambiental é a inversão de valores e o analfabetismo ecológico. A Ética é um conjunto de regras que norteiam as nossas relações com o outro e com o mundo em uma determinada época e sociedade. E a Estética é toda criação inspirada nessa realidade nos sensibilizando para o BELO, e consequentemente para o FEIO. Enquanto o TER for mais importante do que o SER, e a aparência mais importante que a essência, o PODER mesmo conquistado de maneira INCONVENIENTE será aplaudido e reverenciado. O comportamento humano é influenciado pelo conhecimento, mais valores, crenças e objetivos conscientes. Uma das muitas funções desse livro / documentário foi compartilhar saberes e valores. E a crise ambiental sinaliza a necessidade de ruptura com antigos padrões através do diálogo criativo e diverso, e o reencantamento na dimensão estética do discurso ecológico.
Não há mais tempo para ver o tempo passar. É tempo de agir.

Observação:
Texto retirado do meu ensaio sobre o livro An Inconvenient Truth – Al Gore para disciplina Desenvolvimento Sustentável e Ecoturismo do Mestrado em Ecologia Humana e Problemas sociais contemporâneos da FCSH – Universidade Nova de Lisboa.

Colaboradores

Carla Visi

carlavisi@uol.com.br