02/08/2019 Contos de Família
Uma parceria para a vida que inspira amor e devoção
Era 12 de junho, data em que é celebrado o dia dos namorados no Brasil, quando Rafa e Guga foram entrevistados para esta edição da Coluna Contos de Família. Afora o intuito comercial que a ocasião tem para muitas pessoas, o dia foi bem propício para conhecer a história desse casal. A caminhada individual de cada um parece ter sido planejada para que em algum ponto eles se cruzassem e seguissem por uma mesma trilha unidos, em sentimentos e propósitos de vida e trabalho.
Rafaela teve a influência dos pais em seu primeiro contato com a espiritualidade, o que para ela fez com que despertasse sua essência, que guiou seus passos na construção de quem é hoje. Ainda criança, teve acesso aos ensinamentos da doutrina de Alan Kardec, e um contato direto com a natureza, numa roça dos pais, na divisa entre Bahia e Sergipe, onde não tinha energia elétrica, a casa era de pau a pique e a água consumida era carregada direto do rio.
Gustavo cresceu em Salvador e credita à avó materna sua inserção no caminho do autoconhecimento. D. Luisa foi professora de Yoga por cerca de 20 anos e sempre cuidou do neto se utilizando de ferramentas como pêndulos, cromoterapia para alinhar suas energias. Único neto a se interessar pelos assuntos da avó, coube a Guga salvaguardar uma enorme caixa deixada em seu nome, após a partida de D. Luisa em 2008. Livros, caderno de anotações, violão, aparelhos de cromoterapia, um verdadeiro tesouro aos olhos do neto que interpretou o presente como um chamado.
Em momentos diferentes e por motivações diversas, sem saber, nossos personagens nesta história, buscavam as mesmas direções para sua vida. Rafaela encontrou na Yoga um meio de lidar com os desafios emocionais que a preparação para o vestibular lhe impunham, na época iniciou também sessões de terapia para descobrir sua vocação profissional. Decidiu pela faculdade de Belas Artes e daí em diante, seguiu o caminho em busca do autoconhecimento. Foi em 2012, por meio da amiga Fabiana, que na época já estudava o Holocromos, que Rafa conheceu e realizou a formação em Reiki.
Guga que já vinha seguindo os passos da avó,após sua morte, começou pela formação em técnicas de massagens ocidentais e não demorou para chegar às técnicas orientais, como o Chi Kung. Entre as anotações deixadas por D. Luisa, encontrou o contato da pessoa que a iniciou no Reiki e daí se profissionalizou no método de cura energética, passando a trabalhar também com esta terapia japonesa.
Foi durante um curso em Yoga Massagem Ayurvédica (YMA), com Ma Bodhigita, em 2013, que Rafaela e Gustavo se conheceram. Ainda sem saber que dali nasceria uma união de almas, Gustavo considerou a formação em YMA um divisor de águas na sua vida, opinião semelhante a de Rafaela que diz ter atravessado um portal. “Foi quando, pela primeira vez, eu mergulhei em mim mesma. Pela primeira vez, eu tive oportunidade de acessar memórias, emoções, sensações. Foi quando eu pude parar e visitar a minha casa, que não é essa que está aqui fora”, conta Rafaela.
Até ali, os colegas de curso compartilhavam apenas ideais profissionais. Só em 2015, um reencontro uniu de vez Rafa e Guga. “Nós começamos a namorar e em menos de três meses, estávamos morando juntos”, lembra Gustavo. Muito firmes em seus propósitos de viver a essência do ser, se entregaram intensamente à relação. Os desejos, objetivos e gostos aproximavam ainda mais o casal, além disso, ambos já pensavam à época que trabalhar com terapias integrativas fazia muito sentido, porque possibilita que sejam remunerados financeiramente e contribuam com a vida das pessoas.
A conexão com a natureza também era algo muito forte entre eles. “Eu lembro que nossa primeira casa em Salvador, era no meio da Av. ACM, 6h da manhã parecia que o ônibus estava dentro de nosso quarto e combinamos que quem acordasse primeiro tinha a função de colocar pra tocar um CD com músicas que lembravam o canto dos passarinhos, do barulho de cachoeira”, conta Rafa. A varanda da casa foi toda decorada para ser um pedaço dessa referência, as paredes eram pintadas de verde e tinham plantas em todo o espaço.
O refúgio do casal sempre foi o Vale do Capão, como é conhecido o distrito de Caeté-Açu, no município de Palmeiras, região da Chapada Diamantina, onde Guga já tinha uma casa, com planos de ser transformada em uma hospedaria. “Estávamos indo a passeio para o Vale do Capão, quando eu desconfiei que estava grávida”, lembra Rafa. Foi aí que decidiram mudar de vez. “Não queríamos criar nosso filho na cidade grande. Foi nosso mestre (nosso filho) que nos levou de vez para o Capão”, completa Guga.
Com a antecipação dos planos da mudança de cidade, a gestação, a reforma da casa onde hoje funciona a Lilás Hospedaria do Vale e a construção do novo lar para a família foram seguindo conforme a natureza permitiu. Era 29 de dezembro de 2016, quando Arun nasceu. Sim, ele chegou antes que a casa estivesse pronta, o altar não estava posto, a parteira não estava no Capão, assim como a banheira em que nasceria não tinha sido concluída. Mas chegou em um ambiente que transbordava amor. E estava tudo certo.
Como a decisão de Rafaela foi por um parto natural, em casa (e a casa não ficou pronta a tempo), durante o trabalho de parto, 12 hóspedes chegavam na hospedaria, que já funcionava desde junho sob a administração do casal. Logo ali, no quarto ao lado, a magia do nascimento de um ser acontecia, demonstrando a essência da natureza. “A previsão de nascimento era 12 de janeiro, e a gente acreditava que ele ia esperar o tempo certo, mas o universo capricha. Foi aí que eu vi o que era essencial: que era eu estar ali pro meu filho que queria nascer, a presença de Guga ao meu lado e aquela vista incrível do Vale do Capão da minha varanda”, lembra Rafa.
Apesar de jovens, a maturidade do casal é inspiradora. “Guga sempre deu muito apoio, em todas as minhas decisões, não foi diferente quando eu decidi parir em casa. Porque apesar dele ser o pai, quem estava parindo era eu” compartilha Rafaela, que diz ainda que veio do companheiro toda estrutura, aporte, base, força para que pudesse seguir essa escolha. “A gente não comenta isso com muitas pessoas, mas eu me lembro que a parteira Lizandra, que chegou no momento do nascimento da placenta, disse nunca ter sentido tanto amor dentro de um parto. O nascimento de uma criança já envolve muito amor, muita magia, mas era algo que pairava de uma maneira muito sublime e muito palpável”, completa.
Com o filho nos braços, Rafaela finalizou as 13 horas de trabalho de parto, com a expulsão da placenta, segurando Arun no colo, mesmo podendo ter o suporte da parteira para este momento que exige mais presença da parturiente. “Eu ganhei um sanias de Ma Bodhigita, que é Ma Prem Bhakti, cujo significado é Mulher de Devoção ao Amor. Quando Arum nasceu, esse sanias passou a ter mais sentido pra mim. Porque a criança já pede essa devoção, é uma entrega profunda. A maternidade é um tema intenso e enorme, mas ele tendo Síndrome de Down, a nossa pesquisa, a nossa atenção, a nossa busca é maior”, conta.
A descoberta da trissomia do cromossomo 21 em Arun só ocorreu um dia após seu nascimento e foi Gustavo quem deu a notícia. “Quando ele nasceu, eu senti e vi, na fisionomia dele, que tinha alguma coisa diferente. Aí resolvi no dia seguinte pesquisar na internet, e intuitivamente, pensei na Síndrome de Down”. Dentre as características que chamou atenção de Guga, a única prega transversal palmar, que é a fusão das três linhas da mão em uma só, foi determinante para tirar sua dúvida.
E o que mudou a partir dessa descoberta? “Pra mim não mudou nada. Quando a gente tem a oportunidade de ter o nosso filho na nossa casa, no meio de pessoas que a gente ama e confia, somos envolvidos pela ocitocina, que é o hormônio do amor, liberado quando a criança nasce. A única coisa importante ali era que o nosso filho nasceu bem, saudável. E era o ser que a gente estava mais desejando na vida naquele momento”, afirma a mãe de Arun. “A gente quis ter Arun, não foi um acidente”, explica Guga.
Hoje, aos dois anos e meio de vida, Arun continua saudável e cercado de amor de toda família, e já frequenta a escola 3 dias na semana. Vivendo em meio a um verdadeiro paraíso de belezas naturais, sua vida segue respeitando seu tempo e surpreendendo aos pais a cada nova fase.
Rafaela é determinada e arrisca sem medo: “eu penso que meu filho é capaz de fazer tudo. Ele tem um tempo diferente. Começou a andar faz pouco e já está desenvolvendo melhor a fala”. A estrutura emocional que se constrói em torno do pequeno Arun, certamente permite que ele cresça em bases fortes. “Hoje eu vejo que para lidar com ele, o que importa é a relação que construímos com nosso filho, o que vamos trazer um para o outro, como vamos contribuir um para o outro, como ser melhor para o outro”, comenta Rafaela.
A cultura diversa construída pela comunidade da pequena Caeté-Açu é propícia. Rafaela conta como foi tranquila a adaptação do filho na escola. “Ele soube onde queria encarnar. Ele está em um lugar privilegiado, em que não há rejeição na escola, nem preocupação pelo fato dele ter Síndrome de Down. Nós não precisamos falar que ele necessitava de alguém para acompanhá-lo, o que é garantido por lei. A própria direção da escola providenciou isso pra ele”. Os pais contam ainda sobre a interação dos colegas com Arun, dizendo que é uma festa quando ele chega. “Mesmo quando ainda nem falava, ele sempre esteve envolvido nas brincadeiras com outras crianças. Há troca entre eles, há carinho, respeito. Encontramos essa sensibilidade na escola, e isso é ímpar”, completa Guga.
Pensar sobre a importância da estrutura familiar e da escola é se apropriar da parte, que cabe a todo cidadão, de ajudar na construção de uma sociedade mais forte e disponível para ser a mudança e promovê-la em prol da harmonia de toda a humanidade. Hoje pai, Guga reconhece ainda mais a origem de quem é. “No meu último aniversário, postei uma foto na minha página em uma rede social, com meus pais e irmão e descrevi na legenda a importância da família, dizendo que meu maior presente foi ter nascido na família em que nasci. Minha base. Se o mundo está como está é reflexo da situação das famílias. Se os pais estão desconectados dos seus filhos, os filhos desrespeitando os pais e vice-versa, resulta no que estamos vendo. A educação vem de casa, junto com o amor”, opina Guga.
A chegada do filho proporcionou ao casal uma ampliação de consciências indiscutível, além de infinitas experiências inusitadas. Para Gustavo, a vinda de Arun foi um fato transformador. “Quando um filho nasce, acessamos um amor que não éramos capazes de viver antes.
Acredito que a gente vai descobrindo o que é esse amor, quando vê um pedacinho seu ali naquele ser. Muda tudo”, diz o pai. Já a mãe, acredita que a chegada do primogênito faz dela uma pessoa melhor. “Se você pede à vida para ser mais paciente, ela vai te trazer situações para que você desenvolva a paciência. Não seremos hipócritas em dizer que o fato dele ser especial, não nos demande mais paciência ainda. É preciso o triplo de paciência. O que uma criança sem síndrome faz em 3 meses, Arun leva 9 meses para alcançar o mesmo resultado”, explica Rafaela.
Fiéis aos princípios e poderes da natureza, o que se fortalece com a presença de Dr. Áureo Augusto, médico, naturopata, primeiro baiano condecorado pelo Ministério da Saúde, trabalhando no posto de saúde do Vale do Capão há mais de 20 anos. “Arun nasceu com icterícia, por indicação de Dr. Áureo, tratamos com leite materno e chá de calêndula. Se ele nascesse no hospital a conduta seria diferente, cheia de intervenções medicamentosas”, conta a mãe. Consciente do valor da alopatia, Rafaela diz no entanto, que é preciso usá-la com sabedoria, por isso, o chá de calêndula já curou também conjuntivite e a receita do xarope caseiro está sempre a postos. Arun nunca ingeriu nenhum açúcar, laticínios, farinhas e alimentos industrializados. Vez ou outra, a rapadura adoça algum alimento.
Os pais comemoram a saúde de ferro do menino. Arun não tem problemas cardíacos, nem disfunções na tireóide, muito recorrente em quem tem a síndrome. E não foi à toa que nasceu em um parto natural. “Todo mês, eu me emocionava com o desenvolvimento de Arun. Fazíamos acompanhamento fisioterapêutico com visitas a cada três meses e a fisioterapeuta sempre se surpreendia com o desenvolvimento dele”, recorda Rafaela. Recentemente, Arun passou a ser tratado com o canabidiol (CBD), um componente da Cannabis. “Duas semanas após o início do tratamento já percebemos alguns avanços na parte cognitiva, que acreditamos estar associado ao uso. Ele começou a balbuciar novas palavras e associar mais os objetos”, revela Guga.
A experiência de ser observador de uma história como essa, que deixamos aqui registrada à mercê do tempo, propõe uma série de reflexões a respeito do que realmente importa para cada um nessa vida. Seguir por diferentes caminhos profissionais, decidir entre dividir a vida com outro alguém ou viver sozinho, ter filhos, ou não, tudo são escolhas, que podem determinar a nossa felicidade ou simplesmente definir um sentido aos nossos dias. De repente, este pode ser um bom começo nessa busca pela expansão de consciência. Se ainda faltar inspiração, fica registrada mais uma declaração, que pode impulsionar sua ampliação de visão. “Nunca recebi Arun como uma prova. Eu recebi meu filho como uma oportunidade de mergulhar em um assunto que eu desconhecia e de ser um veículo para possivelmente mostrar para algumas pessoas que não precisa temer a condição dele”, conclui Rafaela.