02/08/2019 Tecnologias Sociais
Um povo, várias comunidades e um modo de vida
Nessa edição de aniversário volto a dialogar com vocês queridos leitores. Compartilho uma entrevista e parte de uma vivência que realizei no território Santiago do Iguape que integra o município de Cachoeira – Ba. Nossa entrevistada é Jorlane Cabral de Jesus, tem 34 anos e é uma liderança das comunidades quilombolas. Atua como condutora de turismo étnico de base comunitário, apicultora, marisqueira, ostreicultora e agente de crédito do banco comunitário quilombola do Iguape. Nossa! Quanta coisa hein gente…vamos conhecer um pouco sobre esse território e o modo de vida que integra tecnologias sociais inovadoras como o turismo de base comunitária e o banco comunitário de desenvolvimento.
Não tem como entender esse território sem conhecer quem o habita. Será que todo mundo sabe o que ser quilombola? Para nossa entrevistada “Ser quilombola é uma resistência, é um legado de um povo que vieram para ser escravizados no Brasil. Erámos, princesas, príncipes, reis e rainhas que vieram arrancados forçadamente para servirem aqui a troco de uma alimentação…na verdade a troco de nada. Porque quando você larga o seu país e vem por uma boa causa é um bom legado, mas quando você vem como eles vieram para servir a mão de obra aqui no Brasil, então a história vai muito além. Quilombola é resistência, quilombola é respeito, quilombola é educação. Vieram seres humanos e se tornaram escravos no Brasil. Então, nós aqui do Vale do Iguape, as dezesseis comunidades, vem cultuando e merecemos o grito de libertação. Depois da falsa abolição… É uma falsa abolição mesmo! Muitos escravos receberam a carta de alforria, mas essa carta ainda existe. Então, a agente precisa gritar, precisa falar, ocupar espaços e falar por um povo que sofreu na construção do nosso Brasil. (…) Quilombola pra mim é respeito!”
Imersos nessa fala que remete a uma história dos nossos antepassados que precisamos cada dia saber melhor que perguntei a Jorlane sobre o famoso serviço de turismo de base comunitária que as comunidades quilombolas oferecem a quem quiser se aventurar numa modalidade de turismos que é crescente no Brasil.
Jorlane enfatiza que “o turismo étnico de base comunitária é um turismo associado a economia local, associado a economia solidária. Onde as pessoas que vem nos visitar tem o papel fundamental de não só visitar e tirar fotografias, mas também, sentar, conversar, trabalhar junto com a comunidade, fazer os afazeres que a comunidade tem. O turismo de base comunitária é um turismo diferenciado. Turismo onde a economia local circula. Você abrange as comunidades, abrange as lideranças das comunidades. A gente trabalha, não só a economia, mas também a parte educacional. É um turismo educacional, trabalhamos com as escolas, com as agências. Estamos sendo referência no Brasil. Espero que cresça esse novo mecanismo de trabalho. Porque o turismo hoje nas nossas comunidades vem desenvolvendo não só a economia local, mas o crescimento das organizações que existem. As associações tem um outro olhar, onde as pessoas que vem nos visitar acreditam que a comunidade tem um potencial de informar. Para a gente têm sido um intercâmbio. As pessoas vêm na nossa comunidade saber como implantar um turismo de base comunitária nos outros países, como: Senegal, Japão e Estados Unidos. Então, pra gente o turismo de base comunitária é um início de uma nova ferramenta de trabalho. Porque você trabalha a cultura, trabalha a produção, a educação, a religiosidade. Está tudo envolvido dentro do trabalho, nosso turismo não é tradicional, nosso turismo é totalmente diferente do que existe hoje no Brasil.”
Vejam que interessante! Para quem não conhece, o turismo de base comunitária era reconhecido pelo ministério do turismo e tínhamos políticas públicas que incentivavam. Geralmente são práticas que valorizam a localidade, preservam a cultura e o ambiente local. Os atores sociais da região se envolvem completamente e os roteiros são elaborados a partir do conhecimento histórico, cultural, gastronômico, etc, que valorizam os saberes e práticas de um povo. Assim é o turismo de base comunitária do Santiago do Iguape e uma dos roteiros mais conhecidos é chamado de “Rota da Liberdade”.
A nossa entrevistada também atua como agente de crédito de um banco comunitário de desenvolvimento e ela nos explica que essa tecnologia social (que já apresentei em outra matéria por aqui) veio “para que a economia local permaneça na comunidade. Nós participamos de um intercâmbio na Ilha de Vera Cruz, vimos um banco comunitário em Matarandiba e vimos à possibilidade de implantar um banco comunitário. Porque um banco comunitário no Vale do Iguape? Aqui em Santiago, na comunidade maior, ele está instalado no Vale do Iguape, mas pertence às 16 comunidades quilombolas do vale. O banco comunitário veio trazer a sobrevivência da marisqueira que vai pescar e quando chega não tem o que comer, então pode vir aqui solicitar um dinheiro no banco e o dinheiro é liberado. Então, pra gente agradar a comunidade, para o banco, o papel do banco é desenvolver as ações da comunidade.
Desenvolver várias especialidades que a comunidade trabalha. A gente pensou na comunidade porque a gente tinha e tem um potencial muito grande de sururu e de marisco. Então vimos oportunidade de crescer. Porque temos o banco convencional que é a CAIXA, Bradesco, Banco do Brasil que ficam em Santo Amaro, então existe uma distância de quase cinquenta quilômetros. Então, as pessoas recebiam o dinheiro e gastavam lá mesmo. Então se já existia banco em outros lugares dando certo, porque não daria aqui? Como o banco comunitário, não é meu não é seu, é da comunidade, veio para somar e o banco comunitário veio para desenvolver a economia.”.
Será que vocês entendem quando a nossa entrevistada fala que o banco comunitário deve desenvolver a nossa economia local? Gente, é o seguinte: o banco financia consumo e produção de pessoas que não acessam a rede bancária tradicional. Você já pensou que com seu limite extra no banco você pode comprar coisas no final do mês como remédio e comida? Tem gente que não tem limite especial de crédito. Assim, o banco comunitário funciona como crédito em uma moeda específica que só permite adquirir itens do comércio local porque a moeda só é aceita naquela região. A moeda é o Sururu e a foto está logo aí. Bacana né gente? É uma forma de pensar uma economia inclusiva que valoriza a cultura e o modo de vida de um povo.
Isso fica evidente quando nossa entrevistada fala do Vale do Iguape “que tem a sua festividade, a sua cultura, tem a sua identidade própria que é comunidade quilombola, comunidade ancestral. Além de ter seus monumentos históricos, centenários, então a gente tem esse respeito pela cidade de Cachoeira, uma cidade maravilhosa, uma cidade que trabalha muito a religião africana. Existem muitos candomblés, terreiros, que é uma das origens que tem aqui do Vale do Iguape. Também tem a sua resistência, tem a sua sobrevivência. Existe uma área de pesca na Bahia extrativista. Tem também a pesca que é uma sobrevivência do Vale do Iguape, o pescado e o marisco. Pra gente é o nosso supermercado que Deus nos deu. Também temos a agricultura muito forte. Todo final de semana a agricultura vem abrangendo os municípios de Cachoeira, Santo Amaro e Salvador. Pra gente o Vale do Iguape tem um marco né… uma história. Que foram onde os escravos se refugiaram, se vocês observarem é perto da água doce, da água salgada, das matas, para que nossos escravos se alimentassem. Pra mim o Vale do Iguape é uma resistência de cultura, história e de sobrevivência”. Leitores queridos agora é só marcar uma visita. Termino com a frase da nossa entrevista, perguntada sobre como vê o futuro das comunidades do Vale: “Já temos o nosso modelo de desenvolvimento. Precisamos que ele se sobressaia dentro da conjuntura política que estamos vivendo hoje no nosso país. O futuro da nossa comunidade é não desistir do nosso sonho, do que podemos ser!”.