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21/05/2019 Contos de Família

Uma história de amor, paciência e luta.

Olhando para as fotos que ilustram estas páginas talvez você não perceba nada atípico nesta família. Quer olhar mais uma vez? Não adianta. Olhando de longe, quase ninguém percebe “as ausências” no comportamento de João Guilherme, de sete anos, filho do casal Olindina e Daniel, juntos há 12 anos e pais também de Lara(16) e Paulinho(4). O que não passa despercebido durante uma tarde na companhia dessa família é o amor compartilhado por eles e a alegria pela casa.

Quando conheceu Daniel, Olindina ou Dina, como gosta de ser chamada, já era mãe de Lara, na época com três anos. Depois de quatro anos de relacionamento, Daniel comemorava a chegada do seu primogênito, cuja expectativa era compartilhada, principalmente, pela avó e tia-avó paternas, marinheiras de primeira viagem na função. Guiga, apelido dado por D. Dinai, mãe de Daniel, já nasceu com título de rei. Cercado de amor, atenção e cuidados… Parecia ser uma criança tranquila apenas, aos olhos da tia avó Lázara, pedagoga e de outros familiares.

Desde os primeiros meses de vida de João, no entanto, Dina já percebia que o comportamento do filho fugia ao padrão, quando comparado ao desenvolvimento de outros bebês da mesma idade e dividiu a preocupação com o marido. “Com nove meses, João Guilherme era muito quieto. Não sorria e só chorava no ápice do desespero”, relembra Dina, que completa contando que com um ano e meio de idade, a criança tinha um atraso na fala e mantinha pouquíssimo contato visual. No começo, pensaram que ele pudesse ser surdo, o que foi descartado com o tempo.

Era inevitável pra mãe aceitar que tudo estivesse normal, quando seu instinto lhe despertava dúvidas. Dina e Daniel já identificavam a necessidade de um acompanhamento médico-terapêutico para o filho, que passava dos dois anos. No entanto, a atenção do casal foi desviada para uma emergência. A mãe de Dina, D. Maria Helena, vítima de uma cardiopatia congênita, precisou ser hospitalizada por três meses, até que pudesse realizar uma cirurgia corretiva. “Foi uma fase turbulenta que se tornou ainda mais delicada ao descobrir que estava grávida do meu terceiro filho, então percebi que teria que frear a ansiedade e ir com calma, dando atenção a uma coisa por vez”, conta Dina.

Após a recuperação de D. Maria Helena. Dina e Daniel novamente retomaram a busca por respostas para suas angústias quanto ao desenvolvimento do filho, que continuava aquém das expectativas. Revisitando esse momento da história dessa família, a mãe faz um alerta aos pais que perceberem qualquer dificuldade durante o crescimento do seu filho: “Se notar que a fala e outras funções estão comprometidas, antes mesmo de qualquer diagnóstico, busque as terapias. Isso colabora para que o desenvolvimento da criança aconteça, minimizando as perdas, que são inevitáveis a partir de determinadas idades”. Foi esse caminho que Dina seguiu.

Na época, funcionário de uma empresa de ônibus, Daniel tinha plano de saúde, o que permitia o início de terapias necessárias para a evolução no desenvolvimento de João, então com dois anos e sete meses. No entanto, decorridos três meses, a família só conseguiu realizar as primeiras consultas com fonoaudióloga e psicóloga, que realizaram as anamneses. A demissão inesperada de Daniel interrompeu mais uma vez a busca por um diagnóstico de João.

O acaso se encarregou de trazer para perto da família uma profissional que faria toda a diferença na vida de João. Durante uma visita a uma amiga de Dina, a família conheceu Ana Cláudia Campos, fonoaudióloga, que sinalizou a presença de características do espectro autista no comportamento da criança. A profissional indicou aos pais que iniciassem as terapias e procurassem um psiquiatra infantil para uma avaliação.

A sugestão de que João poderia ser diagnosticado com o Transtorno do Espectro do Autismo – TEA – causou grande comoção e preocupação entre Dina e Daniel, embora ao mesmo tempo tenha sido um conforto diante da desconfiança que os perseguiu por tanto tempo. Em contato com amigos, o casal soube do trabalho do Labirinto, um Centro de Pesquisa da Faculdade Baiana de Medicina, coordenado pela psiquiatra Milena Pondé, que dentre outras atividades, realiza a avaliação diagnóstica através da lista de espera intermediada pela AMA – Associação de Amigos do Autista da Bahia.

Dali pra frente, a mãe e a avó materna se revezaram em insistentes ligações para a AMA durante cerca de três meses, até que conseguissem marcar um atendimento para que João passasse por uma minuciosa avaliação multiprofissional, que confirmaria ou não sua condição de autista.

Além da aflição de ver o filho sofrendo pelos reveses da deficiência, que se manifestavam, por exemplo, por comportamentos agressivos durante o convívio com outras crianças, gerando o isolamento social de João; os pais tinham ainda que se deparar com a reação de familiares e amigos que negavam a necessidade de um cuidado especial para a criança. “Em algumas ocasiões fui criticada por estar ‘procurando doença’ para meu filho e me perguntei se estava mesmo fazendo a coisa certa”, lembra Dina.

A avaliação pelo AMA foi marcada e no seu dia, Dina, Daniel, Lara e vovó Maria Helena estavam lá acompanhando Joãozinho. O exame da equipe, que é obrigatoriamente composta por profissionais multidisciplinares, aconteceu em uma sala, na presença de três médicos e três psicólogos, que observavam João, sob diferentes aspectos, enquanto outro profissional fazia uma anamnese completa que incluiu além da história de vida da criança, uma pesquisa detalhada também sobre a vida dos pais e outros familiares.

A família aguardou o resultado dos exames e a devolutiva com grande ansiedade, e no dia 4 de abril de 2015, exatamente quando Dina precisou estar em São Paulo para um compromisso profissional inadiável, a resposta chegou. Acompanhado da mãe, Daniel foi ao AMA e lá o informaram sobre o diagnóstico positivo do filho. João é autista. “Fiquei completamente desorientado com a informação. Era doloroso demais saber que meu filho não teria condições de uma vida autônoma”, conta Daniel, que ainda passou pela difícil experiência de dar a notícia por telefone à esposa, grávida de sete meses e longe de casa.

Enquanto Daniel ainda processava as palavras ditas sobre o diagnóstico de seu filho, recebia uma série de orientações sobre como proceder dali pra frente para ter acesso a alguns direitos assegurados às pessoas comprometidas pelo autismo. João passaria a ter acesso à gratuidade no sistema de transporte público, auxílio fralda descartável e um benefício social garantido pela Lei Orgânica de Amparo Social (LOAS), que confere o pagamento de um salário mínimo, pelo INSS. “A ajuda minimiza os custos da família, mas é insuficiente para garantir um desenvolvimento adequado. Precisamos nos esforçar muito para oferecer condições ideais para a evolução no nosso filho”, explica Daniel.

“A sensação é que você tem todo o ar do mundo e não consegue respirar”, esse foi o sentimento de Dina ao receber o diagnóstico de que seu filho é autista. A mãe conta ainda que o luto foi inevitável. “Por mais duro que seja, há uma morte. Com a certeza do autismo, morre o ideal de uma criança independente e saudável”, completa. O apoio da família e de alguns amigos foi fundamental para que a fase da dor fosse superada e desse lugar a uma história de amor e luta. Logo após o diagnóstico, pouco depois de completar três anos, João começou a ser atendido pela fonoaudióloga Ana Cláudia e já nas primeiras sessões conquistou grandes evoluções em seu quadro.

No primeiro encontro com a terapeuta, João seguiu suas orientações e separou os animais aquáticos dos terrestres e outros objetos pela cor. Parece pouco, mas para seus pais, esse foi um importante passo para o seu desenvolvimento. A intervenção da terapeuta ocupacional Yana Amazonas, trouxe novos avanços para João e mais alegria para toda a família. “A primeira vez que João usou o banheiro para suas necessidades fisiológicas por conta própria, foi um dia de festa pra gente”, lembra Daniel.

Quando João nasceu, em maio de 2011, ainda nem existia a Lei nº 12.764, criada em dezembro do ano seguinte com o objetivo de instituir a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. No entanto, a realidade em Salvador ainda parece distante quanto aos direitos defendidos no artigo 3° da lei. Sem uma estrutura terapêutica adequada que garanta a integralidade no cuidado ao autista, as famílias buscam ajuda em um Centro de Referência estadual, localizado no bairro do Campo Grande, em Salvador. A demanda é grande, o que leva crianças, adolescentes e adultos a aguardarem por mais de doze meses para um atendimento.

Aliado aos poucos recursos financeiros da família, à falta de oferta adequada para o tratamento e educação em rede pública, casos como o de João exige muita luta da família para garantir os direitos básicos. Depois de diagnosticado, o maior desafio dos pais foi encontrar escolas da rede pública de ensino que aceitassem seu filho como aluno. “Já havíamos passado pela experiência em duas escolas, que não ofereciam o cuidado e a estrutura necessários”, lembra Dina.

A partir do laudo médico e de muita interação com a legislação deu-se início uma verdadeira via crucis até que João fosse matriculado. Foram muitas idas e vindas em diversas escolas da rede municipal de ensino no bairro da Boca do Rio e outros vizinhos, seguidas de informações desencontradas e recusas, até que João fosse matriculado pela própria Secretaria de Educação do município. Antes, Dina precisou recorrer ao Ministério Público e ao Conselho Tutelar para fazer valer os direitos constitucionais que são garantidos ao seu filho. “Os pais não podem esperar acontecer, precisam fazer acontecer. Tão pouco devem desanimar na primeira barreira”, aconselha Dina.

A surpresa veio com a atitude da professora Patrícia, ao receber a notícia da chegada de João na sua classe, se dedicou e foi em busca de instruções específicas para melhorar seu desempenho junto ao novo aluno especial. Mas Dina não parou por aí, sabia da necessidade de uma formação complementar própria para o desenvolvimento de João e seguiu em busca de uma vaga em uma das instituições sociais.

Depois de tentativas incansáveis, aos quatro anos, João foi matriculado também na AMA, onde ainda hoje é assistido pelo Atendimento Educacional Especializado (AEE), que inclusive, foi de onde o pequeno recebeu suporte pedagógico quando esteve fora da rede regular, antes mesmo de ter uma vaga fixa no programa. A equipe que realiza o trabalho é multiprofissional e agrega pedagogos, psicopedagogos, educadores físicos e professora de música. As avaliações para uma vaga no AEE são realizadas pelo Labirinto, em que após o diagnóstico é realizada uma avaliação cognitiva por uma psicopedagoga da AMA. Só após a confirmação do TEA, é possível inserir o nome na lista de espera da AMA.

São inúmeras as lições que o dia a dia na companhia de João traz para família. Daniel acredita que o Universo lhe preparou com muito amor e paciência para enfrentar as dificuldades que viriam. Durante um período, antes de o filho ser diagnosticado, trabalhou como motorista de transporte escolar para driblar o desemprego, e dentre seus passageiros, estavam Deise, portadora da Síndrome de Down, e Mateus, autista. “O convívio com essas pessoas especiais fizeram muito sentido pra mim, quando descobrimos a deficiência de João”, lembra.

Nessa busca incessante para que seu filho tenha estruturas e bases capazes de lhe possibilitar oportunidades, Dina se tornou militante do movimento em defesa dos direitos das pessoas com Transtorno do Espectro Autista e colabora religiosamente com as campanhas da AMA, que sem nenhum apoio de grandes empresas, se sustenta de arrecadações e doações. “Ser mãe de um autista me trouxe pro TODO. Passei a ver o OUTRO. Hoje percebo que são muitos os desassistidos pelos poderes públicos e isso gera em mim uma inquietude”, conta Dina, para quem o nascimento de João foi um divisor de águas na vida. “João me ajudou a ser uma pessoa melhor para minha família e enquanto cidadã,” finaliza.

Colaboradores

Laís Nascimento

jornalismo@estimuladamente.com.br